Saturday, December 30, 2006

Execução e farsa para Sadam Hussein

Quando acabou a Segunda Guerra Mundial em 1945 havia um sentimento mundial de alívio e esperança. O alívio se justificava pelo que representou aquela guerra, pois a humanidade provou definitivamente que podia matar pessoas em escala industrial. Em 27 de Janeiro de 1945 os soldados do Exército Vermelho da antiga URSS liberaram o campo de Auschwitz. Além das vidas dos presos que foram salvas, os soviéticos conseguiram um material muito precioso: filmes e documentos que provavam as execuções em massa feitas pelos nazistas. Esse material foi utilizado como provas contra os criminosos de guerra. Realizado em Nuremberg, o julgamento dos criminosos nazistas trazia uma carga enorme de simbolismo, uma vez que se tratava justamente da cidade onde Hitler anunciou muitas de suas leis racistas. Os nazistas julgados e condenados à morte foram enforcados, pois o fuzilamento é um ato digno entre militares e simboliza um certo respeito frente ao inimigo derrotado e que tem direito a uma morte rápida e sem sofrimento. O enforcamento é destinado a assassinos comuns. Além da execução, era preciso dizer ao mundo as razões pelas quais os nazistas foram condenados. Mas o problema foi jurídico. Como poderia haver legitimidade num tribunal de guerra no qual os vencedores julgaram os derrotados? Um tribunal penal internacional seria mais apropriado, mas não permitiria algo tão importante que é a demonstração de Poder dos vencedores. Mais do que justiça, os Aliados procuraram demonstrar força no julgamento de Nuremberg.

Entretanto a esperança foi fortalecida. Os EUA assumiram o discurso dos valores humanitários e, em que pesem os atos de hipocrisia e manipulação, ninguém pode negar a importância da sua participação na derrota alemã, assim como da URSS. Na guerra do Vietnã o feitiço virou contra o feiticeiro. Se para os nazistas os americanos quiseram encarnar o “bem”, no Vietnã assumiram o papel do “mal”, pois os abusos foram inegáveis. O massacre de My Lai se tornou tão simbólico quanto as imagens da menina vietnamita correndo nua e queimada pelo efeito da bomba de Napalm, o gel incendiário que os EUA lançaram sobre a população civil do país. Não é possível mobilizar tantos cidadãos nos EUA em nome da liberdade e da justiça durante a II Segunda Guerra e vinte anos depois praticar atos semelhantes no Vietnã. Deu no que deu, os EUA conseguiram uma forte oposição interna contra uma guerra tão sanguinária quanto inútil.

Desta vez é o Iraque. O país foi invadido em 2003 sem o consentimento do Conselho de Segurança da ONU. Nada prova que os EUA e o Reino Unido diziam a verdade quando alegavam que o país desenvolvia armas de destruição em massa. O governo de Sadam Hussein foi derrubado e o país ainda mais destruído, pois se tratava de uma terceira guerra desde 1980. Sadam foi preso. Um governo fantoche foi imposto ao Iraque. Os EUA afirmam que há legitimidade no novo governo, pois foi aceito pelos que votaram nas eleições que os próprios americanos organizaram. Faltou apenas convencer o povo iraquiano aceitar a legitimidade e honestidade de um governo que pode tudo no país, menos dominar o exército, obediente aos EUA, e controlar as reservas de petróleo, guardadas para futuros negócios... Ganha um Big Mac quem acertar quais empresas e qual o país serão privilegiados... Sadam foi executado hoje, sábado, às 6:00h no Iraque, 1:00h em Brasília. Tal como Nuremberg, o tribunal que o julgou declarou crimes contra a humanidade. Tal como Nuremberg, Sadam foi enforcado. O mesmo que teve apoio dos EUA na Guerra contra o Irã entre 1980 e 1988. Curiosamente, os crimes pelos quais Sadam Hussein foi condenado ocorreram no período em que recebia armamento e ajuda da CIA para conter o Irã. Tratava-se da Era Reagan, presidente morto recentemente e com o qual Sadam haverá de se encontrar no inferno. O vice de Reagan no período? George Bush, pai do atual Bushinho presidente dos EUA. Resumidamente, tivemos hoje a execução de um ditador assassino, condenado por um tribunal de um Estado governado por marionetes, que por sua vez estão a serviço de pelo menos duas potências que apoiaram Sadam no passado. E que o derrubaram com atos de força que ferem diversas leis e princípios internacionais, provocando a morte de tantas pessoas quanto Sadam provocou com suas armas químicas. Alguém já disse que a história sempre se repete, primeiro como farsa, depois como tragédia. Hoje tivemos a farsa.

Wednesday, December 27, 2006

A MUDANÇA PELA ESCASSEZ

Esse palpiteiro certa vez ouviu que somente os gênios vêem o óbvio. Embora não saiba ao certo a autoria da dita frase, sua simplicidade revela mais do que um fundo de verdade, sendo apenas genial. Um desses gênios que viram o óbvio foi Milton Santos. Em seus últimos anos de vida, adoecido por um câncer, Milton Santos deu muitas entrevistas, demonstrando a consciência de sua importância e a coerência de sua vida. Mais do que um geógrafo reconhecido pelo mundo, Milton Santos foi um professor.

Numa de suas muitas entrevistas Milton Santos disse que acreditava em mudanças e que por isso era um otimista. Disse que as mudanças viriam pela escassez e que a classe média haveria de aprender com os pobres a lidar com esse fenômeno. O professor sabia ver nos pobres a inteligência daqueles que têm de sobreviver com muito pouco. Para fundamentar o que dizia, apontou para as periferias das metrópoles. Esse palpiteiro, por exemplo, foi uma das testemunhas que viram um debate entre Milton Santos e Mano Brown na USP, ocasião em que o professor que já dera aula na França e no MIT, demonstrou grande apreço e respeito pelo poeta da periferia. Antes de tudo, Milton Santos via no rap uma expressão da linguagem urbana - metropolitana - que era mundial por abordar temas que eram também universais como pobreza, violência policial, desrespeito a direitos básicos, falta de moradia e etc. A escassez motiva o ser humano a mudanças. Talvez para melhor.

Desde então esse palpiteiro aprendeu a procurar em diferentes problemas alguns tipos de escassez que pudesse levar a mudanças. Na perspectiva de escassez de energia elétrica todos somos obrigados a adiantar o relógio em uma hora. Na escassez de espaço para a fluidez do trânsito de São Paulo, foi imposto um sistema de rodízio de veículos segundo os números das placas. Embora a instituição do rodízio tivesse sido motivada inicialmente pela poluição do ar. Ou melhor, pela escassez de ar respirável... O que mais despertou a atenção do palpiteiro foi o fato de serem medidas que, tomadas pela escassez coletiva, foram impostas a toda a sociedade. Ricos e pobres não têm alternativas: devem acordar mais cedo todos os anos e serem privados de circular com seus carros ao menos um dia da semana. Muitos são os exemplos de escassez cotidiana. Nos últimos meses, descobrimos a escassez de controladores de vôos e, por conseqüência, a escassez da pontualidade.

Assim, os sonhos desse palpiteiro têm sido direcionados pelos diferentes tipos de escassez. À escassez de mão-de-obra qualificada talvez tenhamos um dia um sistema público de educação mais decente. À escassez de boas condições de vida, talvez um dia tenhamos um saneamento básico melhor e um sistema público de saúde que de fato seja universal e digno. Na perspectiva de escassez de água potável, poderemos, quem sabe, ter práticas mais sábias de uso e conservação dos nossos rios. À falta de segurança, é possível que tenhamos melhores políticas de distribuição de renda, amparo social, moradia, lazer para os adolescentes e segurança pública, que deve sempre existir, mas que sabemos que é tão mais necessária quanto mais escassos forem os serviços e políticas de atendimento à população.

Na escassez de palpites que fossem apropriados para a véspera de mais um ano novo, segue a esperança de que, com tantos tipos de escassez, o ano de 2007 nos traga mudanças e que nunca se esgote nossa capacidade e disposição de nos indignarmos com o que é injusto, desonesto e desnecessário.

Thursday, December 21, 2006

A quem interessar possa...

Segue aqui uma sugestão de link. Um repórter da Globo escreveu uma carta explicando seu desligamento da emissora. Momento raro para entendermos algumas coisas da poderosa. O tom é de desabafo e a oportunidade excelente para reflexões. Meu palpite é simples: divulguemos.


Bom divertimento...

Wednesday, December 20, 2006

O ITA e o consumismo

Um aluno comentou com esse palpiteiro sobre a proposta de redação para o ITA 2007 que tinha como tema uma frase muito sugestiva: “Compro, logo existo”. O dito cujo estava apreensivo, pois embora a instrução da banca examinadora dissesse que critérios ideológicos fossem descartados, o aluno ficou cabreiro e disse que optou por uma crítica comedida ao capitalismo, sem qualquer conotação que o identificasse como “de esquerda”. Esse palpiteiro entendeu e concordou com a atitude do aluno, mas não sem ficar se questionando sobre que motivos levariam o ITA a propor tal redação. Antigamente –há muito tempo mesmo...- não havia vestibular para muitos cursos universitários. O aluno se inscrevia no curso que queria fazer. Marcava-se uma data para uma entrevista e numa conversa de cerca de meia hora o professor da instituição dava o resultado. Por ser aos sábados, esses exames -que na verdade eram entrevistas - ficaram conhecidos como sabatinas. Os tempos hoje são outros. Antigamente poucos terminavam o que chamamos de nível médio e por isso a entrevista se justificava. E se foi verdade que o número de pessoas com o ensino médio completo aumentou, o mesmo não ocorreu com o número de vagas nas universidades, pelo menos não na mesma proporção. Mas a tal sabatina era muito mais do que uma prova oral. O professor tentava avaliar também o aluno por outros critérios como capacidade de argumentação, pensamento lógico, retórica e postura. Não é preciso pensar muito que injustiças também foram cometidas, tal a possibilidade de julgamentos subjetivos predominarem em alguns casos.

Com tanta gente capaz de cursar uma universidade pública e com tão poucas vagas, as universidades optaram pelos tais exames vestibulares. Uma vantagem foi a possibilidade de se avaliar uma grande quantidade de alunos em menor tempo. Dentre as desvantagens estava o risco de aprovar alunos com posturas éticas discutíveis, pois nada impede que uma pessoa seja extremamente inteligente e mau caráter. Uma qualidade não elimina necessariamente a outra. Qual a solução? Muito simples: redação. Além de avaliar certos posicionamentos éticos, há a vantagem de se avaliar a capacidade argumentativa do candidato, além de sua lógica. Unicamp, Fuvest e o Enem estão entre aqueles que reconhecem o valor das redações. Por isso a escolha de temas polêmicos e por vezes espinhosos, como o que o ITA propôs para 2007.

Mas porque uma instituição ligada à Aeronáutica, historicamente anticomunista, daria uma chance dessas, de criticar o capitalismo? Armadilha? Só para lembrar, apenas recentemente o ITA reconheceu o direito de alguns alunos terem seus diplomas, pois foram perseguidos em 1964 e 1975 sob o rótulo de “comunistas”. Coisas das ditaduras... Por isso o incômodo para esse palpiteiro: por quê?

O ITA foi criado em 1950. O mundo ainda estava chocado com o fim da Segunda Guerra Mundial e mais ainda impressionado com o desempenho dos EUA e da URSS. Os EUA estouraram Hiroshima e Nagasaki com bombas atômicas que quatro anos antes eram apenas “uma teoria”. Com dinheiro e muita ciência aplicada, provaram ao mundo que conhecimento pode se traduzir em Poder. Os soviéticos seguiram o caminho. E o resto da humanidade também. Pipocaram universidades e centros de pesquisa em todo o mundo. Alguns países multiplicaram por mil vezes o que investiam em pesquisas antes da maldita guerra. E assim o mundo mudou, dada a quantidade de conhecimentos adquiridos em tão pouco tempo. Iniciamos a “era atômica”, cuja chamada “era digital” também é um subproduto. Mais do que isso, o ITA, a USP, a UFRJ, o INPE, o INCOR, a PETROBRÁS e outras instituições brasileiras ligadas a algum tipo de conhecimento, nasceram do desejo de criar algo próprio, moderno e genuinamente nacional. Mário e Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral plantaram as sementes, colhidas por tantos brasileiros ousados como Oscar Niemeyer, Aziz Ab´Saber ou Isaias Raw, respectivamente arquiteto, geógrafo e pai das vacinas brasileiras. Outro Brasil, que acreditava que seria possível importar idéias para soluções próprias. Antropofagia... O Modernismo nos propunha isso: só fazer.

Mas algo aconteceu e nos desviamos de um caminho interessante. Trocamos o só fazer do modernismo pelo Just do it da Nike. A maldita ideologia neoliberal da década de 1990 pegou como praga e um sentimento de inferioridade se intensificou no Brasil. Em lugar de fazermos, melhor seria comprarmos. Pacotes prontos, em kits. Ligue 011 1406 e toque seu país para frente. Basta pagar. Aceitamos cartões... E assim abandonamos parte do sonho de tantos brasileiros que desejavam um país autônomo tecnologicamente e talvez melhor. O ITA formou grande parte dos engenheiros que hoje trabalham na Embraer, líder das exportações brasileiras. Pode parecer bobagem, mas esse palpiteiro acredita que o ITA está muito mais preocupado com as razões de sua existência do que o consumismo do capitalismo. Mas é só um palpite...

Tuesday, December 12, 2006

As lições do Chile

O Condor é uma ave andina, cujos hábitos o aproximam muito mais dos abutres, bicho carniceiro. Por motivos mórbidos o nome dessa ave foi escolhido para uma ação conjunta das ditaduras do Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai contra presos políticos, apoiada pelo governo dos EUA, através da CIA. Em 1964 o Brasil iniciou sua ditadura. Para fugir de perseguições políticas muitas pessoas se refugiaram no Chile. Lá havia argentinos, uruguaios e paraguaios, além de simpatizantes de outras nacionalidades que apoiavam o governo socialista de Salvador Allende. As fronteiras da América do Sul pareciam então permeáveis. Uma ditadura apertava de um lado e refugiados se escondiam em outro, sempre com a solidariedade de colegas de militância esquerdista. No Chile a situação era peculiar. Um governo socialista tinha sido democraticamente eleito e tentava fazer mudanças estruturais. A sociedade chilena foi então dividida entre os que desejavam as mudanças e os que as negavam. A divisão foi acentuada pelos dois lados. Eram tempos de Guerra Fria e não havia muita margem de negociação: ou se estava de um lado, ou de outro. Houve provocações mútuas. Mas os EUA já estavam decididos há muito tempo. Como no Brasil, um golpe militar foi apoiado e um General assumiu a presidência. Para evitar o trânsito de militantes esquerdistas é que foi criada a Operação Condor.

Maria Regina Marcondes Pinto, esposa do sociólogo Emir Sader foi uma brasileira que por suas ligações com a esquerda chilena foi seqüestrada pela polícia de Pinochet, na Argentina. Um casal de argentinos foi assassinado no Uruguai, diante de seus filhos, uma menina e um menino. As crianças foram levadas até o Chile, onde foram abandonadas. Essa história é contada no livro Clamor, de Samarone Lima. Esse palpiteiro não tem vergonha de dizer que foi o único livro que o fez chorar. E por histórias desse tipo é que seria injusto colocar toda a carga de culpa em Pinochet. Como no nazismo de Hitler ou na União Soviética de Stalin, o ditador comanda, mas nunca age sozinho. Assassinos de escritório. Às vezes nem ordenam um assassinato. Apenas acenam positivamente para algozes de plantão que se afirmam eliminando inimigos do regime imposto.

Pinochet morreu no dia 10 de dezembro de 2006, aos noventa e um anos. Algumas pessoas ficaram tristes e muitas demonstraram uma curiosa felicidade. Esse palpiteiro sorriu. Sua morte teve repercussão internacional, pois Pinochet foi muito mais do que um ditador chileno. Em 1998, um juiz espanhol teve a coragem de pedir sua prisão quando estava na Inglaterra para tratamento médico. Acusação: crimes contra a humanidade. A morte de cidadãos espanhóis no Chile e as leis da União Européia facilitaram a prisão do ditador. Mas Pinochet tinha amigos. Margareth Tatcher o ajudou. A Inglaterra dificultou o quanto pode e por razões humanitárias o devolveu ao Chile. O país é que se virasse com a mala sem alça e assassina. O Chile foi colocado numa situação incômoda: não entregar Pinochet significaria perdoar seus atos. Entregá-lo seria pior, pois significaria que o Chile não era capaz de julgar um criminoso daquela natureza. O Chile preferiu o caminho mais difícil, não entregá-lo e julgá-lo em seu próprio território, com suas próprias leis. Descobriram-se então mais coisas. Além de ditador e assassino de gabinete, Pinochet era corrupto. O homem foi julgado e teve prisão domiciliar. O antes todo poderoso não podia sair de casa sem autorização judicial.

Por tudo o que fez e representou, a prisão domiciliar foi uma grande vitória e não apenas os chilenos ganharam. Henry Kissinger, por exemplo, foi o norte-americano que idealizou muitas coisas na Guerra Fria, inclusive a Operação Condor. É respeitadíssimo no mundo e nos EUA. Mas não pode ir a qualquer lugar. FHC, quando presidente da República, cogitou condecorar Kissinger em São Paulo. Pegou mal. Serra, preso pela polícia chilena em 1973, foi um dos que se incomodaram. Mas a coisa desandou quando alguém lembrou que algum jovem do Ministério Público poderia querer ganhar fama prendendo Kissinger por crimes contra a humanidade. Pelo desconforto causado e riscos no horizonte, Kissinger não veio ao Brasil e não ganhou nada. Histórias como essas se tornaram mais comuns. Poderosos algozes temem algum tipo de punição em países que cogitam visitar. Mas a grande lição mesmo foi o dia de hoje. Pinochet está morto e seu corpo velado. Apesar de manifestações de alegria, tem o direito de ser reverenciado também. Quem quiser chorar que chore. Os que comemoram tem ao menos um alento: provar que são muito melhores que Pinochet e que o Chile hoje respeita os direitos humanos, inclusive do homem que mais os desrespeitaram no país. Cremar Pinochet com respeito é talvez a maior lição de humanidade que o Chile possa demonstrar a todo o mundo civilizado.

Friday, December 08, 2006

SÃO PAULO, AS CHUVAS E AS TRÊS GRANDES BOBAGENS

Esse palpiteiro vive no hemisfério sul, ganha a vida dando aulas de Geografia e aprendeu antes de entrar na faculdade que em Dezembro se inicia o verão em São Paulo. Com ele as chuvas.
Para quem não conhece, São Paulo tem como marco inicial de sua formação o que chamamos hoje de Pátio do Colégio, um lugar onde os Jesuítas iniciaram um processo de aculturação e envangelização de índios. Quem for até o local, verá que fica numa área mais elevada do que o Tamanduateí. Além de estratégico para a defesa - afinal nem todos os índios queriam ser evangelizados...-, o lugar estava livre das inundações do verão, quando o tal rio transbordava. Pode-se dizer que esse foi o padrão de formação de São Paulo: áreas mais elevadas, como os topos de morros. Alguém que viesse à São Paulo do início do século XX observaria à noite não uma cidade contínua, mas várias. Cada topo de morro das áreas mais centrais com luzes acesas e vales inteiros ainda com a vegetação original, escuros.
Mas a cidade cresceu e foi se expandindo para as áreas disponíveis. Os vales foram gradativamente ocupados por casas e ruas. Os mais ricos- como reza a tradição - ocuparam os melhores lugares, ou seja, aqueles que não inundavam. Os mais pobres... E esse processo foi rápido: São Paulo tinha cerca de 100 mil habitantes em 1900. Hoje conta com mais de 10,5 milhões. Para compararmos, Londres hoje tem cerca de pouco mais de 7 milhões de habitantes, datando aproximadamente do ano 50 D.C. . Crescemos mais em menos tempo. E com menos dinheiro...
Uma grande característica da cidade de São Paulo foi a prioridade dada ao automóvel. Londres, Paris, Nova Iorque e Buenos Aires já tinham metrô quando os dirigentes de São Paulo optaram pelo carro. O Túnel da 9 de Julho, as grandes avenidas como a 23 de Maio e a Paulista são exemplos dessa tara pelo rodoviarismo.
Mas o exemplo maior dessa forma de crescimento da cidade está nas avenidas Marginais do Tietê e do Pinheiros. Geometricamente uma boa idéia. Duas grandes avenidas expressas, ao estilo das vias americanas, conduzindo os fluxos de automóveis nos sentidos norte-sul e leste-oeste. Para alguns poucos a idéia foi melhor ainda. Bastava construir as marginais bem próximas aos rios. Quanto mais próximas, mais espaços da várzea para serem valorizados e vendidos. Assim, foi um bom negócio comprar um brejo antes da contrução e vender depois um terrenão valorizado. Para isso era preciso apenas saber onde seriam construídas as avenidas, comprar o brejo, vendê-los e dar uma porcentagem do ganho ao político que deu ou vendeu a informação. Tudo isso sem meter a mão diretamente nos cofres públicos, mas fazendo a prefeitura dar lucro. Para poucos.
Faltou apenas combinar com as chuvas. Desde o tempo do Anchieta - o tal padre evangelizador - se sabia que as várzeas inundavam no verão. Ninguém em perfeitas condições de sanidade mental construiria em lugares inundáveis. Sobrava espaço então para o futebol. Campos de futebol às margens dos grandes rios e de seus afluentes. E assim, talvez nenhuma expressão seja tão paulistana quanto a do "futebol de várzea"... Mas nem todos dispunham de sanidade mental. A ganância para a obtenção de ganhos com obras superfaturadas, assim como a prática da especulação imobiliária com brejos loteáveis fizeram essa cidade que se orgulha de ser a maior do país se tornar refém de qualquer chuva mais forte.
A cidade continou crescendo e novas áreas foram ocupadas. Outro fenômeno se deu então. Simultânea à tara que São Paulo desenvolveu pelos automóveis, tivemos a fobia por terra. Toda e qualquer área com "mato" passou a ser cimentada. Esse palpiteiro ainda se lembra de sua infância quando visitava casas com quintais enormes cobertos com um piso de cerâmica bem vermelha. A moda passou e hoje é mais elegante ter pisos de ardósia no quintal, com a churrasqueira no fundo. Terra? Isso é coisa de pobre e "dá muito trabalho". Com tantas áreas cimentadas e com tanta ardósia, a água tem cada vez menos lugares para se infiltrar. Os geógrafos americanos estudaram muito isso e chamam de runoff o escoamento superficial de águas como as das chuvas. Menos terra, maior o runoff. Ou o escoamento superficial.
Bingo!! Conseguimos duas grandes bobagens num só processo: avenidas construídas em várzes de rios que se enchem muito rápido com um fluxo de água que não tem mais tanto espaço para se infiltrar. Enchentes.Mas faltava ainda a terceira grande bobagem. Como descrever tudo isso. Num país com péssima qualidade ensino, a geografia para muitos se limita ao conhecimento das capitais dos países ou para um bom desempenho no "Show do Milhão". Tentar compreender o uso do espaço pela sociedade e como esse tipo de uso pode comprometer nossa qualidade de vida se tornou conversa de chatos. Assim nasceu a terceira bobagam: jornalistas que explicam esses problemas apenas pelas chuvas. Exemplo dessa grande asneira são manchetes do tipo: "chuvas castigam São Paulo". Ou ainda sermões ridículos de jornalistas ignorantes que acreditam seriamente que a culpa pelas enchentes é de "quem joga lixo no chão". Na ignorância do jornalismo paulista reiside a confortável omissão frente aos reais problemas que afetam a cidade durante as chuvas de verão.
Alguns insanos chegam a utilizar o termo "caos urbano". Como se essa monstruosidade que construímos não tivesse nenhuma lógica. A lógica do ganho com a venda de carros, a especulação imobiliária e o superfaturamento na construção de ruas e avenidas nos explica muitos dos nossos problemas. Culpar a natureza pode ser muito mais do que ignorância. Atribuir a "São Pedro" ou a qualquer outra entidade espiritual as causas de nossos problemas não deixa de ser um ato de fuga e ou covardia. E enquanto combinarmos ignorância e covardia seremos bombardeados com essa pérola do jornalismo que se repete todos os verões: "CHUVAS CASTIGAM SÃO PAULO"...

Monday, December 04, 2006

O jeitinho absurdo

O JEITINHO ABSURDO

Há uma lenda no país do absurdo que diz que para tudo se dá um jeito. Ou melhor, para tudo há de se dar um jeitinho... Não se sabe quem foi o primeiro a notar a corruptela do jeito para o jeitinho. Pois jeito não é o mesmo que jeitinho.Se ao primeiro se dá a conotação de improviso, ao segundo o sentido é ético. De todo modo, o que se sabe é que dar um jeitinho envolve muito mais do que simplesmente dar um jeito. O jeitinho no país do absurdo é dado no diminutivo por que é tido como algo maroto e digno de orgulho. Muitas vezes soa mais como o filho caçula, menino temporão que veio somente a finalizar todo o processo de formação do país.
A matança de nativos para a tomada de suas terras, a imposição de uma religião, a escravidão negra, o descaso com o meio natural, as grandes desigualdades, enfim, tudo o que fora necessário para a constituição do país do absurdo não seria suficiente se não fosse o famigerado jeitinho. A lógica funcional do jeitinho não pode ser aprendida teoricamente. Requer acima de tudo prática. O jeitinho é vivido. Pois é certo que o que num momento seja passível de um jeitinho, noutro pode suscitar grande revolta e indignação. A lógica do jeitinho não está necessariamente na sua execução, mas acima de tudo em seus executores. O exercício do jeitinho torna-se soberano quando acompanhado da pergunta “ sabe com quem está falando?” . A pergunta mais afirma do que questiona, pois traz implícita a posição na hierarquia social de quem a fez. O jeitinho, quando acompanhado da pergunta, é soberano e forte em sua imunidade legal.
Para um país tão grande e com tamanhos ABSURDOS, o jeitinho não pode ser considerado de maneira uniforme. Por isso resolvemos dar um jeitinho na sua exemplificação. Lembramos que há uma infinita combinação de situações em que sempre caberá o jeitinho.
Vejamos então um exemplo:

O JEITINHO NOSSO DE CADA DIA: Dada uma fila qualquer com mais de vinte pessoas e uma espera de pelo menos trinta minutos entre o fim da fila e o atendimento, o jeitinho logo aparece. Alguém encontra um conhecido numa posição privilegiada da fila. Inicia-se uma conversa informal, geralmente animada e cheia de intimidade. O papo evolui a ponto de não mais ser percebido pelos demais da fila, preocupados com a demora no atendimento. A fila se movimenta, os amigos vão ao atendimento juntos. São atendidos. Saem felizes, um por ter dado um jeitinho de furar a fila. O outro por ter concedido a facilidade que será então cobrada em outra situação semelhante. Ninguém reclama na fila porque há um código de ética no jeitinho. Não se deve reclamar do indivíduo que furou a fila. Reclama-se da ausência de um amigo na frente dele. Lamenta-se a falta de sorte e, com fé, alimenta-se a esperança de que um dia se encontrará um amigo numa fila ainda maior. Nesse dia, toda a falta de sorte será expiada.
O país do ABSURDO tem dado um jeitinho em tudo há muito tempo. Talvez um dia possa ser esgotado. Talvez um dia o jeitinho possa não ser mais viável. Sei não, acho que esse dia já está ficando cada vez mais próximo. De todo modo, o jeitinho tem a chance de saber que aqui não há nada que comprove essa tese, consituindo antes de tudo mais um palpite...
Obs.: esse palpiteiro tem constado as limitações do jeitinho com o Windows.