Em tempos de informação rápida, dispersa e superficial, herois e
bandidos são construídos e desconstruídos com requintes de vulgaridade. O
velho Mandela é o exemplo do momento. Ele foi condenado por terrorismo pelo
regime racista do Apartheid na África do Sul. E considerado pela CIA como
elemento perigoso e potencialmente comunista, razão do apoio dos EUA ao governo
racista sul-africano. Mandela defendeu ações terroristas contra o governo do
seu país na década de 1960. Décadas depois, constatou-se que os planos de
Mandela estavam num contexto de um regime autoritário e desumano, razão pela
qual as explosões planejadas por seu grupo deveriam ser consideradas como atos
de resistência legítima, a exemplo da resistência francesa contra os nazistas.
Mandela foi solto por pressões internas e externas. Ganhou um prêmio Nobel da
Paz e, hoje, no leito de morte, é considerado um dos maiores líderes do século
XX. Ele teve uma vida pessoal nada tranquila. Contra ele, pesa uma acusação de
agressão a sua primeira mulher, ainda antes de ser preso na década de 1960. Sob
essa ótica, quem é Mandela? Líder pacifista, libertário, terrorista ou agressor
de mulher? Quem leu a autobiografia do velho deve se lembrar da frase que nos
ajuda a entende-lo: “não sou santo”.
A mídia estrangeira e sua subsidiária tosca no Brasil vivem a construir
herois e bandidos. Curioso é notar que o heroi de hoje pode ser o bandido de
amanhã, e vice-versa. Mas será que as pessoas mudam tanto assim? Ou mudam os
juízos e rótulos que se constroem sobre elas?
Um palpiteiro notou que um candidato a herói/bandido não tem
recebido a atenção devida, em que pese o conteúdo explosivo de sua importância.
Edward Snowden é o típico caso misterioso, do qual ainda não tivemos a exata
dimensão da sua importância.
Snowden é um nerd que não tem curso superior. Seu talento para
sistemas de informação poderia ser comparado a Marc Zuckerberg do Facebook,
Bill Gates, da Microsoft, ou Steve Jobs, da Apple. A diferença é que Snowden
não ficou rico. Mas convenhamos, azucrinar a Casa Branca, irritar FBI, CIA e
outros 13 serviços de inteligência dos EUA e, ainda por cima, indispor as
relações dos EUA com dezenas de países, em menos de duas semanas, não é um
feito a ser desprezado. Os outros nerds adorados pela mídia fizeram fortuna.
Snowden está prestes a fazer história.
O nerd em questão trabalhou na CIA, na Suíça. Para quem não sabe,
as contas secretas de paraísos fiscais como a Suíça atendem a mais do que corruptos,
sonegadores fiscais, terroristas, traficantes e outros criminosos. Governos
usam contas secretas para encobrir ações de seus espiões, em serviço pelo mundo
afora. Quanto maior o poder econômico e ou político de uma potência, maior é a
necessidade dessas contas secretas em outros países. Se levarmos isso em conta,
dá para ter uma leve ideia do quanto Snowden viu e sabe.
As informações disponíveis até agora indicam que o nerd amargurou
muita coisa pelo que viu e testemunhou. Em 2008, em final de governo Bush,
Guerra do Iraque e campanha eleitoral, Snowden apostou que as coisas poderiam
melhorar com a vitória de Obama. Não melhoraram.
O rapaz então tomou a decisão que causa confusão em meio mundo- e
isso não é força de expressão. Vivia com sua namorada no Havaí até poucas
semanas atrás. Decidiu voar para Hong Kong e denunciar o departamento de Estado
dos EUA de lá, da China. O governo dos EUA pediu sua prisão. A China não tem
acordo de extradição com os EUA e liberou o rapaz. Interessante notar que a
China, acusada de prisões arbitrárias pelos americanos, não ter prendido
Snowden em seu território. Gente maldosa e dada a palpites aposta num eventual
acordo entre o governo chinês e Snowden: você
denuncia os Ianques a partir de nosso território e damos as condições para que
saia antes de sermos forçados a prendê-lo. A China não dá ponto sem nó.
EUA, Rússia, Europa e América Latina em discussão por conta de Snowden e os
chineses assistindo a tudo, de camarote...
Mas afinal, o que Snowden denunciou? Segundo ele, a Agência de
Segurança Nacional dos EUA tem condições de monitorar e grampear qualquer
computador conectado na internet. Sistemas sofisticados permitem a quebra de
sigilo com a manipulação dos dados da Microsoft, Facebook, twitter, Skype e,
quem sabe, até naquela página moribunda que você guarda no pré-histórico Orkut.
De acordo com o nerd dedo-duro, os EUA monitoram a União Europeia
e várias autoridades dos países do continente. Há informações de que tenham
fuçado a vida de autoridades e empresários no Brasil. E, se perguntar não
ofende, a questão torna-se tão óbvia quanto abjeta: se os EUA agem assim com
amigos, o que não estariam fazendo com inimigos? Ou antigos rivais, como Rússia
e a China?
Snowden voou da China para a Rússia, numa área internacional do
aeroporto de Moscou. Tecnicamente não está na Rússia. Os EUA pediram à Rússia
que o prendesse. Mas o país também não tem acordo de extradição com os EUA.
Danadinho esse nerd...
Apesar do escândalo provocado pelas atitudes nada legais- em duplo
e pobre sentido- dos EUA, Snowden é um criminoso. Ninguém pode revelar segredos
de Estado para o mundo. Isso é tão criminoso nos EUA, quanto no Brasil ou na
Tailândia. Mas Snowden e muitas outras pessoas acreditam que não se trata de um
crime. Trata-se do descumprimento das leis de um país que descumpriu leis,
acordos e bons modos com meio mundo. Para o governo dos EUA, Snowden é nada menos do que um traidor de alto calibre. Para outros mundo
afora, é um heroi que lutou pelo direito à verdade.
Na semana passada houve mais um episódio interessante nessa
história toda. O presidente da Bolívia, Evo Morales, estava em Moscou, num
encontro de chefes de Estados produtores de gás natural. O avião de Morales tem
baixa autonomia de voo e precisa ser reabastecido com regularidade para viagens
longas. No caminho de volta, Portugal, Espanha e França negaram o necessário pouso
para o avião de Morales. Coube à Áustria conceder o direito INTERNACIONAL de um
avião presidencial fazer uma parada para reabastecimento. Segundo Morales, os
austríacos revistaram seu avião, à procura de Snowden. Não o encontraram. Mas
provocaram um incidente internacional sem precedentes na história recente. A
atitude dos austríacos é antes de tudo uma agressão, condenada pelos protocolos
diplomáticos internacionais. Morales protestou, e teve a solidariedade de
outros presidentes latino-americanos, o Brasil inclusive.
Mas cá entre nós, gente maldosa aposta que os russos e os
bolivianos deram um passa-moleque nos EUA e nos seus paus-mandados europeus.
Não precisa ser um gênio especialista em espionagem para imaginar que há a presença
da CIA em Moscou. Assoprar nos ouvidos dos espiões da CIA na Rússia, sugerindo
que Snowden estivesse no avião de Morales, não é algo lá tão difícil de fazer. Sobretudo
para os russo, velhos conhecidos da CIA... Dada a gana dos EUA para prender
Snowden e, a histórica relação hostil do presidente Morales aos EUA, nada mais
lógico. Tudo faria muito sentido, caso Snowden estivesse realmente no tal
avião. O saldo foi catastrófico para muita gente. Para os europeus que barraram
Morales, ficaram o peso de cometerem uma ilegalidade e o constrangimento de
terem agido errado sob ordens de Washington. Ou seja, saíram na foto como
paus-mandados de Obama. Para os EUA, ficou pior. Seu serviço de inteligência e
espionagem pode até ser sofisticado e intrometido, mas, neste caso, provou ser
incompetente a ponto de não saber com precisão onde de fato estava Snowden...
A novela prossegue. A Venezuela está disposta a dar asilo político
a Snowden. O problema é como deslocar o moço de Moscou a Caracas, num voo que
exigiria pouso para reabastecimento. Uma pergunta é mais do que provocativa:
onde?
Sabe-se lá o que acontecerá com Snowden e com as relações
dos EUA
com o mundo. Espionar a União Europeia, indispor-se com a China, se atritar com
o governo russo e ofender a América Latina não é pouca coisa para menos de 15
dias. O tempo se encarregará do destino de Snowden que, a despeito de ser
inteligente e ousado, precisa de aliados poderosos e, quem sabe, alguma sorte.
Não erra quem disser que, hoje, Snowden é prioridade número 1 dos EUA,
comparável ao que foi Bin Laden há pouco tempo.
Mas a história, como a Geni, tem lá o seus caprichos. Até o
momento, Snowden provou que é bom de xadrez. Joga com muita inteligência e uma ousadia
capaz de fazer qualquer 007 de idiota.
Mas então, Snowden será Heroi ou bandido? Talvez daqui a algumas
décadas tenhamos um julgamento mais sereno. Hoje, não deixa de ser empolgante
assistir a mais uma página da história sendo escrita. E interpretada das maneiras
mais diversas.