Saturday, May 12, 2012

É a Geografia, estúpido!

De tempos em tempos surgem ondas favoráveis a intervenções do Poder Público que trarão as soluções mágicas de que todos nós precisamos. Em comum, seguem alguns padrões: nunca são fruto do pensamento nativo; seus defensores citam ao menos 3 cidades ou países -normalmente ricos- que já as utilizam com sucesso; a simplicidade da solução é acompanhada da sensação de que fomos tolos por não termos pensado "nisso antes"; as soluções mágicas somem do jeito que apareceram, sem ninguém explicar a razão de seu sumiço...

A solução mágica de hoje no Brasil é a bicicleta. Bebedores de vinho francês bradam as vantagens do seu uso. Amsterdã e Paris são lembradas como bons exemplos da substituição do automóvel em favor da bicicleta. E militantes das duas rodas com tração humana aparecem vociferando pelo seu direito ao transporte individual não motorizado. 

Mas seria a bicicleta uma solução viável?


Talvez sim, talvez não. Não se nega que a bicicleta como meio de transporte polui menos, faz bem à saúde e melhora as relações entre os habitantes de qualquer cidade. Mas é preciso que se tenha em conta a peculiaridade de cada cidade. 

As cidades europeias que tem promovido o uso das bicicletas tem um elemento natural em seu favor: a topografia. São cidades construídas em planícies, ou seja, terrenos com poucas variações nas suas formas de relevo. Ou ladeiras, para sermos mais precisos. Não é absurdo pensar em ciclovias com mais de 50 Km numa cidade como Paris. Mas acreditar que na cidade de São Paulo poderemos ter algo semelhante sem ao menos um morro é uma grande ingenuidade. 

Recentemente foi inaugurada uma ciclovia na marginal Pinheiros, em São Paulo. A ideia é boa, e merece o respeito como espaço para a atividade física. Fechar pistas de algumas avenidas para lhe dar acesso aos domingos é excelente. Mas no cotidiano de trabalho, impraticável. As ciclovias em São Paulo deveriam ser construídas em fundos de vale, onde os terrenos são aplainados. São aquelas avenidas mais largas, que normalmente desembocam em outras mais largas, tendo como destino comum as avenidas marginais. Ou alguém sonha que teremos ciclovias FUNCIONAIS nas avenidas Rebouças, Brigadeiro Luis Antônio e Lins de Vasconcelos?


Quem tiver a curiosidade de observar um mapa da cidade de São Paulo verá um padrão de avenidas largas que desembocam nas marginais, pois foram construídas nos vales mais largos e baixos dos rios que cortam a cidade. Muitas de nossas avenidas reproduzem o traçado dos rios que constituem as bacias dos rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí. 

Um exemplo disso é a avenida do Estado, que acompanha o Tamanduateí e desemboca na marginal Tietê. Fizeram duas grandes avenidas num sistema já existente. Em São Paulo as várzeas dos rios é que se tornaram a base para grande parte do sistema viário. 


Ciclovias nessas avenidas mais largas e baixas são aparentemente uma ideia simples, se aceitássemos que todos os habitantes da cidade morassem nessas áreas. O problema é como chegar a elas. São Paulo é uma cidade que nasceu e cresceu no "Domínio dos Mares de Morros Florestados", como ensinou o velho mestre Aziz Ab'Saber. As florestas já não existem mais. Porém os morros, sim.


Seja nas áreas centrais ou nas periferias, o que predomina na cidade de São Paulo são os morros. Rapidamente: tente se lembrar dos lugares que você passa pela cidade que não são partes de morros, com ruas que sobe ou descem? Terrenos aplainados são regra ou exceção em São Paulo?


Diariamente, milhões de pessoas se deslocam de carros, motos, ônibus trens e metrôs na Grande São Paulo. Ao contrário das cidades europeias, os mais pobres moram muito longe dos centros que apresentam maior número de empregos, e não dispõem de transportes coletivos confiáveis no horário, seguros no deslocamento e confortáveis para o corpo e para a alma.

Em resumo, construir ciclovias parciais não resolveria um problema que é metropolitano. 


Mas os demagogos aparecem sempre e, entre eles, os amigos das soluções da moda. A gestão de Kassab, o exterminador do futuro, tem se esmerado nesse sentido. Não construiu corredores de ônibus para que as pessoas utilizem mais o transporte coletivo. Ao mesmo tempo, tem sido generosa - a gestão - na liberação da construção de condomínios e prédios que resultam em mais trânsito. Ao lado de Kassab surge a sra. Soninha Francine, adepta da onda ciclista. 


E assim pedalamos. Uma cidade gigantesca, cheia de morros, com uma distribuição espacial de empresas e trabalhadores que exige longos e demorados deslocamentos com soluções infantis. 


Estudar topografia? Bobagem...

Reconhecer as diferenças do sítio urbano que existem entre São Paulo e Paris é coisa para chatos. Para que repensar a organização espacial da cidade e os transportes coletivos se podemos comprar bicicletas? 

A prefeitura isola uns 100 km de ciclovia numa cidade com mais de 1.200 km2, as autoridades tiram fotos e, se houver atropelamentos, é só culpar os motoristas...


Soninha Francine, a vereadora que vai mudar SP com sua bike...




O prefeito Gilberto Kassab mostra como pretende trabalhar com o revolucionário sistema de ciclovias em São Paulo. Note que o prefeito usa capacete para proteger a caixa craniana de onde brotam as mais brilhantes soluções para o sistema de transportes da cidade. Perguntar não ofende: os demais companheiros de Kassab estão de capacete para carona ou eles pretendem revezar o uso do veículo?




Av. Brigadeiro Luís António, onde o palpiteiro aguarda a ciclovia que dará oportunidade a alguns engravatados usarem suas bikes para trabalhar na Av. Paulista. Será interessante ver os motoristas da cidade a manter uma distância mínima de 1,5m de um ciclista que arriscar subir essa avenida...




Mapa da Grande São Paulo com o Rodoanel, em funcionamento e em projeto. Para os ignorantes, um mapa resolve qualquer problema. Para quem estudou um pouquinho de geografia, esse tipo de mapa não revela claramente onde tem subidas e descidas. Repare nas várzeas dos rios Tietê e Pinheiros e nas ruas que neles desembocam. 

Divulgação


Friday, May 04, 2012

Que Tinoco descanse em paz

O palpiteiro ficou sabendo hoje, 4 de maio de 2012, que Tinoco morreu num hospital municipal de São Paulo. Ele era simplesmente metade da dupla "Tonico e Tinoco", que cantava modas de viola e música caipira (Para quem tem um pouquinho de discernimento, há a diferença entre uma coisa chamada "música caipira e um troço chamado "música sertaneja"). 

O palpiteiro cresceu ao som da música de Tonico e Tinoco. Numa época em que a música eletrônica dominava as rádios e que qualquer coisa cantada em português era mal-vista, as músicas de Tonico e Tinoco resistiam nas rádios AM. 

Os "jovens" e "modernos" sabiam de tudo. Inclusive que a música caipira era coisa de velho, ignorante e analfabeto. Os caipiras que moravam na cidade sabiam que tinham uma história, uma origem e uma dupla que cantava sobre isso. Tinham várias duplas, mas era a "Tonico e Tinoco" que simbolizava a resistência caipira numa cidade que queria ser NY com uma população majoritariamente pobre, mal-escolarizada e cabocla. 


Particularmente, o palpiteiro aprendeu a gostar mais de Tião Carreiro do que Tonico e Tinoco. Discordâncias respeitadas, Tião Carreiro é na viola caipira o que Bach foi na música erudita e Jimmy Heendrix no rock. Pessoas que amam a música reconhecem talentos e gênios que se manifestam de diferentes formas. Bach, Hendrix e Tião Carreiro. Ignorantes classificam diferentes gênios por hierarquia, com o ridículo  do "melhor" e do "pior". Tonico e Tinoco não eram os melhores. Mas eram, indiscutivelmente, autênticos. 


Quem cresceu na cidade de São Paulo, como filhos de gente do interior,  entre as décadas de 1950 e 1980,  entende bem o que se quer dizer nessa postagem. 

Para quem não vivenciou esse momento, nessas condições, a morte de Tinoco é algo banal, como a queda de um motoboy ou uma chacina na Grande SP.

Tinoco morreu. Com ele se foi um pouco da história do século XX do rádio e da música popular do Brasil. Um dia poderemos ter no Brasil o orgulho de termos artistas como Tinoco, Luis Gonzaga, Cartola e Tião Carreiro. Tanto quanto os alemães tem de Bach, os franceses de Vivaldi e os italianos de Pavarotti. Por enquanto isso não é realidade. Nossas elites continuam a beber vinho francês e acreditar que são superiores por conhecer jazz e a Flórida. Valorizam trufas e desdenham do doce-de-abóbora...Ignorantes com soberba, apenas.

Que Tinoco descanse em paz. Justiça ao seu talento e à sua importância será um dia feita. Mesmo que demore mais um pouco mais.