Friday, December 08, 2006

SÃO PAULO, AS CHUVAS E AS TRÊS GRANDES BOBAGENS

Esse palpiteiro vive no hemisfério sul, ganha a vida dando aulas de Geografia e aprendeu antes de entrar na faculdade que em Dezembro se inicia o verão em São Paulo. Com ele as chuvas.
Para quem não conhece, São Paulo tem como marco inicial de sua formação o que chamamos hoje de Pátio do Colégio, um lugar onde os Jesuítas iniciaram um processo de aculturação e envangelização de índios. Quem for até o local, verá que fica numa área mais elevada do que o Tamanduateí. Além de estratégico para a defesa - afinal nem todos os índios queriam ser evangelizados...-, o lugar estava livre das inundações do verão, quando o tal rio transbordava. Pode-se dizer que esse foi o padrão de formação de São Paulo: áreas mais elevadas, como os topos de morros. Alguém que viesse à São Paulo do início do século XX observaria à noite não uma cidade contínua, mas várias. Cada topo de morro das áreas mais centrais com luzes acesas e vales inteiros ainda com a vegetação original, escuros.
Mas a cidade cresceu e foi se expandindo para as áreas disponíveis. Os vales foram gradativamente ocupados por casas e ruas. Os mais ricos- como reza a tradição - ocuparam os melhores lugares, ou seja, aqueles que não inundavam. Os mais pobres... E esse processo foi rápido: São Paulo tinha cerca de 100 mil habitantes em 1900. Hoje conta com mais de 10,5 milhões. Para compararmos, Londres hoje tem cerca de pouco mais de 7 milhões de habitantes, datando aproximadamente do ano 50 D.C. . Crescemos mais em menos tempo. E com menos dinheiro...
Uma grande característica da cidade de São Paulo foi a prioridade dada ao automóvel. Londres, Paris, Nova Iorque e Buenos Aires já tinham metrô quando os dirigentes de São Paulo optaram pelo carro. O Túnel da 9 de Julho, as grandes avenidas como a 23 de Maio e a Paulista são exemplos dessa tara pelo rodoviarismo.
Mas o exemplo maior dessa forma de crescimento da cidade está nas avenidas Marginais do Tietê e do Pinheiros. Geometricamente uma boa idéia. Duas grandes avenidas expressas, ao estilo das vias americanas, conduzindo os fluxos de automóveis nos sentidos norte-sul e leste-oeste. Para alguns poucos a idéia foi melhor ainda. Bastava construir as marginais bem próximas aos rios. Quanto mais próximas, mais espaços da várzea para serem valorizados e vendidos. Assim, foi um bom negócio comprar um brejo antes da contrução e vender depois um terrenão valorizado. Para isso era preciso apenas saber onde seriam construídas as avenidas, comprar o brejo, vendê-los e dar uma porcentagem do ganho ao político que deu ou vendeu a informação. Tudo isso sem meter a mão diretamente nos cofres públicos, mas fazendo a prefeitura dar lucro. Para poucos.
Faltou apenas combinar com as chuvas. Desde o tempo do Anchieta - o tal padre evangelizador - se sabia que as várzeas inundavam no verão. Ninguém em perfeitas condições de sanidade mental construiria em lugares inundáveis. Sobrava espaço então para o futebol. Campos de futebol às margens dos grandes rios e de seus afluentes. E assim, talvez nenhuma expressão seja tão paulistana quanto a do "futebol de várzea"... Mas nem todos dispunham de sanidade mental. A ganância para a obtenção de ganhos com obras superfaturadas, assim como a prática da especulação imobiliária com brejos loteáveis fizeram essa cidade que se orgulha de ser a maior do país se tornar refém de qualquer chuva mais forte.
A cidade continou crescendo e novas áreas foram ocupadas. Outro fenômeno se deu então. Simultânea à tara que São Paulo desenvolveu pelos automóveis, tivemos a fobia por terra. Toda e qualquer área com "mato" passou a ser cimentada. Esse palpiteiro ainda se lembra de sua infância quando visitava casas com quintais enormes cobertos com um piso de cerâmica bem vermelha. A moda passou e hoje é mais elegante ter pisos de ardósia no quintal, com a churrasqueira no fundo. Terra? Isso é coisa de pobre e "dá muito trabalho". Com tantas áreas cimentadas e com tanta ardósia, a água tem cada vez menos lugares para se infiltrar. Os geógrafos americanos estudaram muito isso e chamam de runoff o escoamento superficial de águas como as das chuvas. Menos terra, maior o runoff. Ou o escoamento superficial.
Bingo!! Conseguimos duas grandes bobagens num só processo: avenidas construídas em várzes de rios que se enchem muito rápido com um fluxo de água que não tem mais tanto espaço para se infiltrar. Enchentes.Mas faltava ainda a terceira grande bobagem. Como descrever tudo isso. Num país com péssima qualidade ensino, a geografia para muitos se limita ao conhecimento das capitais dos países ou para um bom desempenho no "Show do Milhão". Tentar compreender o uso do espaço pela sociedade e como esse tipo de uso pode comprometer nossa qualidade de vida se tornou conversa de chatos. Assim nasceu a terceira bobagam: jornalistas que explicam esses problemas apenas pelas chuvas. Exemplo dessa grande asneira são manchetes do tipo: "chuvas castigam São Paulo". Ou ainda sermões ridículos de jornalistas ignorantes que acreditam seriamente que a culpa pelas enchentes é de "quem joga lixo no chão". Na ignorância do jornalismo paulista reiside a confortável omissão frente aos reais problemas que afetam a cidade durante as chuvas de verão.
Alguns insanos chegam a utilizar o termo "caos urbano". Como se essa monstruosidade que construímos não tivesse nenhuma lógica. A lógica do ganho com a venda de carros, a especulação imobiliária e o superfaturamento na construção de ruas e avenidas nos explica muitos dos nossos problemas. Culpar a natureza pode ser muito mais do que ignorância. Atribuir a "São Pedro" ou a qualquer outra entidade espiritual as causas de nossos problemas não deixa de ser um ato de fuga e ou covardia. E enquanto combinarmos ignorância e covardia seremos bombardeados com essa pérola do jornalismo que se repete todos os verões: "CHUVAS CASTIGAM SÃO PAULO"...

2 comments:

Anonymous said...

Professor Moraes...
Minha filha me perguntou se eu estava ocupado... disse que não.. aí ela me disse: oh.. tem um professor meu que escreve um blog e vem cá dar uma olhada nos textos dele.. são muito interessantes...
Eu como um pai solícito, prontamente a atendi e pensei cá com meus botões: deve ser chato...... mas o que não fazemos pelos filhos..
Fui até o teu blog, com ela ao lado e comecei a ler o texto abaixo: São Paulo, as chuvas e as três grandes bobagens.
Pensei que fosse parar de lê-lo na metade, ou adormecer no meio, já que o peso da idade me faz cochilar várias vezes ao dia.....
Mas.... que nada...... o teu texto está primoroso... É digno de ser lido por toda a imprensa capenga desse país....Após lê-lo resolvi mudar minha rotina semanal: ao invés de ler as reportagens daquelas revistas famosas, colocarei seu blog nos favoritos e darei preferência aos seus textos..... com certeza meu proveito será bem maior.
Muito obrigado por me agraciar com essa aula.. e mais ainda... obrigado por ser professor da minha filha.... é o dinheiro mais bem investido do ano....Espero que vc. esteja recebendo tão bem quanto eu pago o Colégio Objetivo.. pois vc. merece....
Ganhou um admirador...

Anonymous said...

Vamos somar mais uma grande tragédia ao "mar de água doce" que biblicamente cumpre a profecia de inundar SP todo ano.

Vc meu amigo, como "djo", sabe bem que a maior orelhada de se colar pistas expressas aos rios, e já que estão lá, foi não colar ao lado destas mesmas pistas expressas os trilhos que chegam ao rio tietê, vindos lá do interior rural sertanejo rústico de SP, passando por nossa belíssima Paristuba.

Assim, ao invés de se criar viadutos em toda cidade para cruzar o obstáculo artificial férreo, bastariam as pontes que cruzam o inevitável obstáculo natural rio.

Estações de trens ao lado de pontes, com grande ramais se deslocando em direção aos bairros e vice-versa, através de trens de superfícies, tbe. paralelos às grandes avenidas que já se encontram por lá.

Tombamento das áreas marginais e construção de espaços de lazer ao longo de toda avenida marginal, no dois sentidos. O maior parque urbano em extensão que haveria.

Pouca poluição, zero em desapropiação, aumento da qualidade de vida.

Mas, isso seria muito barato.

E ai eu pergunto: A quem interessa a simplicidade no caos?

Rasca.