Thursday, November 27, 2014

A Fuvest deveria ser uma prova, não uma novela.

Há muitos a Universidade de São Paulo aplica provas para selecionar candidatos para os seus cursos. Há muitos anos que esse fato é visto, vivido, contado e sofrido de diferentes modos. Aqui o que se faz é apenas isso: acrescentar mais uma às diversas interpretações e lendas que o exame seletivo da Universidade de São Paulo inspira.

O mais curioso na abordagem no processo seletivo da Universidade de São Paulo é a sua narrativa. Na era do "jornalismo de novela", a história rende com um enredo simples, personagens marcantes, herois, vítimas, vilões e um final feliz. E todos os anos, no mês de novembro, a mesma novela é veiculada no noticiário e surge como temas de conversas familiares, amigos e outros grupos carentes de maiores distrações. 

Essa novela digna da programação vespertina do SBsTeira tem títulos e nomes que já foram incorporados em nossa linguagem. O exame seletivo para ser facilmente assimilado pelos espectadores da novela foi simplificado pelo singelo "Fuvest", sigla da Fundação Universitária para o Vestibular. A própria universidade também foi reduzida a uma sigla, USP. 

Esqueça a história de que o exame já fora feito de diferentes formas para diferentes cursos, que já incluiu entrevistas orais ou que já fora aplicado em conjunto com outras universidades. Não leve em conta que a Fuvest aplica uma prova com um objetivo tão simples quanto cruel, que é milhares de pessoas, muitas delas com pleno potencial de aproveitamento acadêmico. Desconsidere o necessário questionamento a respeito dos critérios levados em conta para a elaboração das provas que são consideradas muito boas, mas que a sensatez lembra que estão longe de serem perfeitas. Muito longe. 

A novela da Fuvest exige que tudo seja reduzido à sigla. Isso agiliza a conversa, evita maiores reflexões e garante a popularidade. A audiência gosta e repercute. 

O enredo da novela poderia ser resumido "à saga dos bravos guerreiros que enfrentam muitas dificuldades para garantir seu lugar ao sol". Ou " a conquista da honra de ser tornar uspiano". Ou " a garantia de que o futuro será melhor para aqueles que vencerem". Ou ainda que "os melhores prevalecerão". Cá entre nós, não há novela sem exageros e dramas. 

Como todo enredo, é preciso haver a construção de situações e personagens que nos levarão ao ápice e, para que tenha sucesso de público, apresente um final feliz. 

Assim, a história abrange o "professor legalzão" do cursinho, que diverte e "ensina brincando". A menina que estuda 16 horas por dia e que almeja uma vaga no curso de medicina e confessa seu sonho: "quero ser pediatra" ou de que "gostaria de ajudar as pessoas em programas de ajuda humanitária". Volta e meia aparece também o caso do vestibulando, aluno do cursinho que se destaca nos simulados, estuda muito e ainda tem tempo para malhar na academia, distrair-se com jogos eletrônicos, tocar guitarra, andar de skate, fazer jiu-jtso e ter uma namorada. Ou seja, um jovem como você, tão humano como qualquer um de nós, só que um pouquinho mais interessante que nossa mediocridade existencial pode admitir. 

O ápice da novela da Fuvest é precedido de matérias "jornalísticas" que primam pela originalidade. Todos os anos uma equipe do Jornal Hoje ou do Jornal Nacional filma a aula da véspera da prova, entrevista o professor para uma aula comum e verdadeira, pois, afinal de contas, quem entre nós já não assistiu a uma aula com uma equipe da Rede Globo na sala? O espetáculo deste tipo de "reportagem" conta ainda com "as dicas do que pode cair na prova" - como se todo mundo anotasse e conferisse depois. Para finalizar, a "matéria" é finalizada com as recomendações sobre o que você pode ou não pode fazer no vestibular e os horários de fechamento dos portões. Com frequência o âncora anuncia a próxima matéria, que normalmente surpreende por apresentar alguns times que irão jogar na reta final do brasileirão...      

O dia de realização da FUVEST é o ápice da trama que se repete em prosa e vídeo há tantos anos. Na falta de assunto, links com chamadas ao vivo mostram o congestionamento de veículos a caminho. À noite, as cenas de candidatos chorando diante de portões fechados anunciam o último capítulo. 

No mês de fevereiro a lista dos aprovados fecha o enredo da novela. Cenas de alunos emocionados, pais entrevistados em momento de jubilo e muitos rostos pintados. No intervalo comercial anúncios publicitários de universidades particulares ou cursinhos surgem como amparo àqueles que não puderam desfrutar da felicidade festejada e promovida pela TV. 

Estamos a pouco tempo da realização de mais uma primeira fase para Fuvest. Seja lá qual for a sua expectativa, sonho ou angústia, ela será realizada como tem sido há tanto tempo. Alguns irão bem e outros nem tanto. Pouquíssimos conquistarão pontos com folga para o curso desejado. Um número considerável de candidatos atingirá a nota mínima para a segunda fase de provas. A maioria lamentará a ausência do nome entre os convocados para a sequência do exame. Seja lá qual for grupo em que você esteja, o mundo continuará a ser maior do que essa prova. Todos os que se inscrevem na Fuvest desejam o mesmo. O fato de alguns conseguirem atingir seus objetivos e outros não, é explicado por uma série de fatores que antecederam a prova. Seu desempenho, seja lá qual for, é apenas um momento de uma vida escolar com experiências boas e ruins que fizeram sua história. 

E acredite, a história da sua vida é muito mais séria e importante do que uma prova de exame vestibular. Ou maior do que qualquer novela que simule uma realidade que não condiz com o que as emissoras de rádio e TV mostram todos os anos. A novela da Fuvest pode ser repetida, mas sua vida é única. Aproveite-a bem.   
  
  

Saturday, November 22, 2014

Moisés da Rocha, guerreiro do Samba, guerreiro da Paz.

Na era digital poucos meios de comunicação têm aproveitado tanto novas oportunidades quanto aqueles que se dedicam ao rádio. A invenção velha que as novas tecnologias turbinaram. Enquanto a TV perde para o youtube e os computadores para os celulares, o rádio parece não apenas ter se adaptado e resistido, mas sobretudo se fortalecido.

Diferentes das outras mídias, o rádio proporciona uma identidade singular. Tornamo-nos amigos de locutores, âncoras e repórteres. Assumimos paixões e ódios em relação a emissoras e programas. De vez em quando brigamos e mudamos de estação. As emissoras podem mudar, assim como as pessoas, mas a relação de lealdade permanece.

E poucos programas e radialistas podem ostentar a honra de ter tanta gente fiel e leal quanto ao que motiva esse palpite, escrito no dia da consciência negra. Pois quem explora o dial na Grande Paulo sabe que  há décadas há um programa peculiar e muito respeitado por quem entende de rádio e cultura brasileira: "O samba pede passagem", apresentado por Moisés da Rocha.

O programa de Moisés da Rocha pode ser apreciado na Rádio USP, na sintonia dos 93,7 Mhz, aos sábados e domingos, a partir do meio-dia. Ouvir "O samba pede passagem" é ter a oportunidade de conviver com a cultura viva, permanente, emocionante e marginalizada do samba, dos sambistas e de seus admiradores. Na verdade o programa prima pela simplicidade bem conduzida: é de entretenimento, pois proporciona o contato com a música que distrai e alivia a alma. É informativo, pois é o único canal de notícias que noticia ensaios de escolas de samba diversas, festas comunitárias, datas simbólicas e calendários de atividades ligadas ao mundo do samba. Mas o programa também é formativo, pois sempre é possível aprender algo sobre a cultura e a sociedade brasileira, por meio de histórias e entrevistas com gente que vive do samba, pelo samba e para o samba.

Mas o que diferencia não é o conteúdo, mas a proposta. Oferecer o contato com algo da cultura popular brasileira com a preocupação social, ética e humana. O samba, normalmente lembrado pela mídia grande apenas no carnaval ou pelos estereótipos de costume, é tratado com respeito, mais do que por admiração. Em "O samba pede passagem" sabe-se que a música é uma das manifestações legítimas da identidade que permite a luta comum pela liberdade de um povo. E todos os programas isso é lembrado na voz do insuspeito Plínio Marcos numa gravação que é mais do que um jingle ou chamada, mas o compromisso de quem produz, participa, apresenta e ouve. Como diz o apresentador, "tá todo mundo convidado!".

Mas afinal de contas, quem é Moisés da Rocha? O homem que defende o samba com carinho é antes de tudo tolerante diante das diferenças. Criado em Ourinhos e com formação Metodista, há quem estranhe quando o ouve desejar "axé" para as pessoas. Moisés da Rocha é antes de tudo um respeitador das diferenças de cor, cultura, classe social e religião. Canta no "Coral de Resistência de Negros Evangélicos". E também foi um guerreiro de fato, não apenas simbólico. Na década de 1950 o Brasil participou da missão de Paz da ONU no Canal de Suez e Moisés da Rocha foi um dos soldados enviados. O guerreiro do samba foi também um soldado em um cenário de guerra. Nos dois casos em missão de paz, como pode se conferido pelo que tem disseminado nas últimas três décadas. 

Numa entrevista à revista Trip, Moisés da Rocha declarou que seu programa "dá voz à periferia". Quem se dispuser a ouvi-lo poderá comprovar todos os fins de semana, a partir do meio-dia na rádio USP: "tá todo mundo convidado...". 

Em tempos de polarização política, ofensas gratuitas, preconceitos generalizados e falta de bons modos, é gratificante saber que há alguém que tem lutado com firmeza e coerência sem levantar o tom da voz ou ter qualquer manifestação agressiva. Alguém um dia disse que era preciso endurecer sem perder a ternura e Moisés da Rocha é simplesmente assim: duro em sua trajetória mas também terno. Este palpite é dedicado não apenas a ele, mas a todos que de um modo ou de outro se sensibilizam e reconhecem a importância do dia da consciência negra. E àqueles que almejam um país mais justo, solidário e fraterno.            




http://revistatrip.uol.com.br/so-no-site/moises-da-rocha.html

Wednesday, July 09, 2014

O peso da camisa do Flamengo na derrota por 7x1

O Brasil perdeu para a Alemanha por 7x1. Foi num jogo de semifinal, por uma Copa do mundo disputada em casa no ano de 2014.

No dia seguinte a perplexidade. Análises, justificativas e outros palpites de todos os lados. De todos os tamanhos. De todas as profundidades. E ao fim do último comentário ou desabafo um fato prevalecerá: o Brasil perdeu para a Alemanha por 7x1, tendo jogado em casa, por uma Copa do Mundo. 

O Brasil perdeu porque jogou mal. A Alemanha venceu porque jogou bem. Ou o Brasil jogou a pior partida de sua história. E a Alemanha simplesmente jogou bem. 

A seleção alemã jogou com uma camisa linda, homenagem ao time do Flamengo. Quem gosta e conhece futebol sabe o simbolismo disso. O Flamengo de Zico e Júnior. O Flamengo que foi campeão do mundo com um futebol alegre, mas acima de tudo bem jogado. O Flamengo de Adílio e Leandro. O Flamengo que jogava bonito num tempo em que o Grêmio tinha Renato Gaúcho e o Inter tinha Falcão. O Flamengo do tempo em que o São Paulo teve Careca, Oscar e Serginho Chulapa. 

Mario Gotze comemoração Alemanha contra Chile (Foto: EFE)

A seleção da Alemanha homenageou o futebol brasileiro ao jogar com a camisa do Flamengo. E venceu por 7x1. 

A seleção da Alemanha homenageou a geração de atletas que queriam ser como Pelé. A geração que vibrou com o Tricampeonato de 1970 no México. 

A seleção da Alemanha venceu o Brasil por 7x1 ao mesmo tempo em que homenageava o futebol que não ganhou copas, mas que deu muitas alegrias. A seleção da Alemanha venceu por 7x1 com a camisa do Flamengo que jogava contra Sócrates, do Corínthians, na primeira metade da década de 1980.  

http://globoesporte.globo.com/platb/files/157/2010/05/zicofez3noflaflu.jpg
O Brasil já teve um futebol assim. Os jogadores saíam dos campeonatos estaduais e ficavam concentrados, sob o comando de gente como um tal de Telê Santana. Os jogadores de um tempo em que corriam mais nos gramados dos treinos do que posavam para fotos para redes sociais. Jogadores que dedicavam-se muito. Que se divertiam até com excessos fora dos alojamentos. Mas eram jogadores que não eram tão vinculados com filmes publicitários. Jogavam por amor apenas? Claro que não. O futebol já não era puro há muitas décadas. Mas havia também um gosto por jogar bola. Talvez maior do que o amor que muitos dos jogadores de hoje têm pela exposição midiática. 

O Brasil perdeu parte do seu encanto no início da década de 1990. Cansados de jogar bonito e perder jogos decisivos os donos da bola passaram a investir mais em outros aspectos. O vigor físico e a "tática" passaram a ser mais valorizadas. O improviso e a arte tornaram-se mal-vistas. Quase um pecado. 

O Brasil venceu as Copas de 1994 e 2002. Jogou mais feio do que nas conquistas do passado, 1958, 1962 e 1970. Mas o sucesso pareceu indicar que o caminho da força estava correto. E passamos a valorizar o jogo feio sob a crença de que se pode vencer. Competir tornou-se menos importante do que vencer. Jogar bonito não era mais bonito. 

Em 2014 o Brasil perdeu para a Alemanha por 7x1, numa semifinal de Copa do Mundo, jogando em casa. 

A Alemanha jogou com a camisa do Flamengo. 

A Alemanha venceu o Brasil por 7x1 ao mesmo tempo em que homenageava a beleza do futebol brasileiro. A beleza de um futebol que nós mesmos quisemos matar. 

Que os meninos de hoje vejam o futebol do passado. E que aprendam que a beleza também faz parte do futebol. A beleza do drible, não do cabelo do Neymar. A beleza do improviso, não das chuteiras da Nike. A beleza das jogadas com parceria. 

Que os meninos de hoje entendam a razão pela qual a Alemanha usou a camisa com as cores do Flamengo.  E venceu.      

Wednesday, March 05, 2014

O que querem na Ucrânia?

Um erro muito comum nas análises sobre questões internacionais é a personificação dos fenômenos. Nesse tipo de abordagem, convivem a ingenuidade e a má-fé. Às vezes juntas, outras vezes separadas. Não raro fundidas em uma só. Em outras palavras, países não são comparáveis a pessoas. 

Mas como fugir da armadilha das personificações? Antes de tudo, conceitos, história e informações confiáveis.  

Conceitualmente é preciso reconhecer que chefes de Estado falam em nome de seus povos, mas que não são a personificação deles. Representam, mas nem de longe encarnam o que seus povos são. Qualquer nação tem suas contradições. Em que pese uma relativa popularidade para certas questões, sempre haverá grupos descontentes e de oposição. Isto serve para o Brasil de hoje, para Rússia do Carnaval 2014 e para a Alemanha dos tempos de Hitler. Obama representa o povo estadunidense. Cretino é aquele que crê na possibilidade de que todos os seus cidadãos com ele concordem. 

Conhecer um de história também ajuda um bocado. Questões internacionais não nascem do acaso. Não brotam como cogumelo ou surgem como bolor do pão que se esqueceu no armário. Toda crise entre dois ou mais países revela o desequilíbrio de uma dança que já se ensaiava há tempos. 

Nenhum líder colocaria seu prestígio interno e externo em xeque por um capricho matinal. Se ele prevê que terá problemas sérios por uma iniciativa política qualquer, a primeira coisa que leva em conta é se vale ou não a pena. Toda hostilidade ou até mesmo violência respondida deve ser ponderada com o ganho que se pretende ter. Em outras palavras, os líderes se perguntam: "vale ou não à pena?". 

Esmiuçando uma encrenca internacional em andamento verifica-se que os interesses que nela se reconhecem hoje já existiam antes. Em muitos casos, a crise do presente deriva de soluções que não atenderam plenamente os lados em disputa do passado. Ou que líderes do presente entendam que seu país tenha perdido injustamente algo que no presente possa ser recuperado. Um líder maroto é capaz de ressuscitar uma velha questão, aparentemente resolvida, para que possa mudar o curso da história. Ou seja, tenta recriar o processo político, histórico, econômico e social a partir de uma iniciativa do momento, enraizada pelo tempo mas ainda não totalmente enterrada. 

A informação confiável é outro elemento importante, mas que se mostra escasso em nossos tempos. A chamada era da informação nos oferece quantidade e rapidez. Características muitas vezes dispensáveis quando se quer consistência e fidelidade aos fatos. Em nossos tempos a informação consistente e confiável tem sido atropelada por questões práticas e técnicas. Na prática, os grande veículos de informação têm demitido jornalistas mais velhos e experientes, preferindo contratarem os mais jovens e afoitos. A necessidade de redução de gastos justifica essa medida no mundo todo. E aquilo que se ganha no orçamento com os mais jovens é perdido na credibilidade com a publicação de notícias superficiais e com a profundidade analítica de um pires. Fotos e imagens têm sido mais relevantes do que parágrafos de revelem um pensamento mais cauteloso e ponderado. Essa é uma das razões que nos fazem ver as mesma imagens, com descrições semelhantes e um discurso único para o mesmo problema. Perdemos em profundidade aquilo que nos vomitam em quantidade a cada minuto pelos "grandes veículos" da imprensa, nacional e estrangeira. 

Tecnicamente a informação necessária tem sido prejudicada por uma abordagem jornalística que alguns estudiosos têm chamado de "a novelização da notícia". A exemplo do que ocorre nas novelas, não há nuances. Não há espaço para contradições. Num noticiário novelizado há apenas o bem e o mal. O vilão e o herói. O certo e o errado. As notícias são pautadas por essa lógica simplista, para que o leitor, telespectador ou ouvinte tenha "facilidade" de entendimento. Outro aspecto da informação novelizada é a divulgação de certos eventos por etapas, como se fossem capítulos. Nesse tipo de jornalismo, os vilões são carregados em seus aspectos malignos e não se tem nada que possa identificá-los com seres humanos, dotados de bondades e maldades. No oposto, os heróis são quase puros, com virtudes acima de todos e infalíveis. A malandragem ocorre quando personalidades da política ou da polícia são mostradas como heróis coadjuvantes. Nos casos mais bem-sucedidos da novelização jornalística os heróis são gente da própria imprensa. Isto é, aquele veículo ou jornalista que conseguiu, com seu talento e trabalho, a informação que ninguém até aquele momento havia conseguido. O herói midiático é assim aclamado, implicitamente, como aquele que realmente fez a diferença.

No caso da Ucrânia, o que temos então?


A novelização da crise russo-ucraniana começa ao se aceitar que Putin é o vilão. Ou o herói, a depender da fonte escolhida. Putin não é um vilão, assim como está longe de ser um herói. Ele é o cara que serviu ao regime soviético, que usou de meios legais e ilegais para se destacar em sua carreira de agente da KGB. Foi o homem que soube entender o momento político e econômico da Rússia para recuperar a auto-estima de seu povo e realizar mudanças que trouxeram melhorias sentidas por muitos. Putin poderia ser glorificado por isso. Mas seus adversários dentro e, principalmente fora da Rússia, salientam seu personalismo, seu nacionalismo exacerbado e a facilidade com que elimina adversários dentro e fora do país. Tudo isso é verdadeiro, mas incompleto diante do que ele representa para muitos russos. E também não explica o óbvio: se ele é tão mau quanto dizem, por que tem permanecido no poder por tanto tempo? Seja por quais razões forem, inclusive as criminosas e imorais, não se negue a Putin a habilidade que o mantém no Poder desde 2000. Nenhum dirigente russo, desde os tempos dos Czares, conseguiu o que ele tem hoje: a permanência no poder por tanto tempo numa democracia, ainda que repleta de problemas. 

Putin sabe que o nacionalismo e o orgulho dos russos é algo com que não se pode brincar. E que rende popularidade. Quando o governo Bush tentou atrair a Geórgia para a Otan, com promessas econômicas e estratégicas, Putin jogou xadrez. Numa primeira jogada reconheceu a cidadania de georgianos da Ossétia do Sul que se consideram russos. Na segunda jogada, distribuiu armas secretamente para forças pára-militares russas na Ossétia, ou seja, armou pessoas no território georgiano. Em seguida, deixou que o dirigente da Geórgia acreditasse que Bush fosse confiável. O presidente da Geórgia foi tolo o bastante para atacar os russos em seu território. E Putin habilidoso o suficiente para invadir o território vizinho com 300 tanques e ataques aéreos. Bush não arriscou ter problemas com a Rússia por conta da Geórgia. Reclamou e ameaçou com palavras. Nada fez. O presidente georgiano não teve apoio dos EUA e a Ossétia do Sul declarou-se independente. No papel, a Ossétia do Sul não é território russo. Na prática sim. 

Seis anos depois da crise com a Geórgia, Putin volta a jogar, desta vez na Ucrânia. O país tem cerca de 25% da população com etnia russa, principalmente no leste, próximo das fronteiras com a Rússia. Os ucranianos do oeste consideram-se mais europeus e menos russos. Durante a existência da URSS muita coisa aconteceu por lá. A Rússia invadiu a Ucrânia e apoiou os comunistas do país, instalando seu regime socialista e reprimindo os ucranianos de oposição. Na década de 1930, milhares de ucranianos morreram de fome, diante de um programa de agricultura imposto por Moscou. Quando a Alemanha nazista invadiu o país, muitos foram os ucranianos que se aliaram aos alemães. Assim como foram muitos aqueles que deram suas vidas para a vitória do Exército Vermelho. Após a guerra, Stalin perseguiu muitos ucranianos considerados traidores, assim como condecorou seus heróis. 

Na década de 1950, o sucessor de Stalin, Nikita Krushev, cedeu a Crimeia, território com maioria russa para a Ucrânia. Há quem diga que Krushev tenha dado um gesto de reparação ao que os russos fizeram no país. Dizem que ele conheceu como poucos os abusos do stalinismo na Ucrânia. A cessão territorial seria então uma compensação histórica para isso. Krushev pode ter agradado muitos ucranianos, mas irritou muitos russos, tanto da Crimeia quanto da própria Rússia. Isso nunca foi aceito por um bocado de gente na Rússia. Essa insatisfação atravessou gerações e são a eles que Putin quer atender hoje. 

A Crimeia foi mantida como território da Ucrânia, mesmo quando a URSS se desintegrou e o Exército Vermelho se retirou do país. Por acordo, a Crimeia manteria o russo como língua oficial e parte de seu litoral no Mar Negro se tornaria área militar da Marinha Russa. Muitos ucranianos ocidentais não aceitaram esse acordo. Muitos deles descendem daqueles que se aliaram aos nazistas na Segunda Grande Guerrra Mundial. Muitos deles apoiaram ou lideraram a derrubada do presidente formal da Ucrânia há poucos dias. 



Em vermelho, os ucranianos de fala russa. 

ukraine 2010 election
Resultado das eleições de 2010. Em azul, os russos votaram no presidente deposto... A disputa na Ucrânia é mais do que política, é étnica.

Pelo lado dos EUA e da União Europeia, a instabilidade ucraniana foi bem-vinda. Por gestos e palavras apoiaram os opositores do governo anterior, leal à Rússia. Com dinheiro daquelas contas secretas que Edward Snowden conhece bem, financiaram grupos mais exaltados. Inclusive neo-nazistas. Putin fez o mesmo, financiando e armando grupos de "auto-defesa" russa na Ucrânia. Ou seja, EUA e UE financiaram e armaram opositores ucranianos do oeste e a Rússia os que apoiavam o governo a leste. Qualquer semelhança com o que ocorre na guerra civil em andamento na Síria não é coincidência...

Putin conseguiu autorização de seu leal parlamento para invadir a Ucrânia, em nome da defesa dos direitos humanos de russos que vivem naquele país. No papel, tem autorização legal de seu país para marchar até Kiev, capital ucraniana. Na prática, Putin usa essa autorização como um sinal, algo que pode vir a ser feito, não o que exatamente irá fazer. Uma ameaça enfim.

Pelo lado os EUA Obama discursa com firmeza. Suspendeu negociações econômicas e ameaçou com sanções. O problema é que isolar economicamente a Rússia não é bom negócio, para os EUA, para a UE e para o mundo... A Rússia é o principal fornecedor de gás natural para os europeus, por meio de gasodutos que atravessam a Ucrânia. Em caso de hostilidades maiores não precisa disparar um único míssil. Basta cortar o gás para a Europa. Putin faria isso? Fez em janeiro de 2007, por cerca de 10 dias, em pleno inverno europeu..

Obviamente que Putin sabe que a suspensão do gás natural para a Europa provocaria uma crise mundial da qual seu país também seria vítima. É verdade que a Europa precisa do gás russo. Assim como é verdade que a Rússia precisa do dinheiro pago por esse gás fornecido aos europeus. 

A escalada das hostilidades verbais chegou a níveis perigosos durante os dias de Carnaval. Tropas russas avançaram e recuaram sobre o território da Ucrânia. Soldados da "auto-defesa" russa no país foram vistos portando fuzis AK-47 e devidamente saudados pelos russos na Ucrânia. Grupos neo-nazistas agrediram russos, comunistas e templos judaicos. Os ânimos estão exaltados e há muito discurso de ódio de ambos os lados. Há muita pólvora e muita gente brincando com fogo. 

Pelo lado dos EUA, da União Europeia e da Rússia não há o menor interesse numa guerra. O mundo já tem problemas demais para mais um, com grandes proporções. Mas, à maneira de tempos imemoriais, não se pode fingir que uma provocação não foi feita. Ou seja, ver um potencial adversário com atos desafiadores e nada fazer em nome da "segurança mundial". Isso é nobre entre seres humanos. Mas não estamos falando de pessoas, mas de países, certo? 

No jogo de provocações, ameaças, avanços e recuos, deverá prevalecer o interesse maior: evitar uma guerra. alguém pode errar o tom e as coisas desandarem de vez. Essa possibilidade é sempre colocada. Mas a probabilidade maior é a de que se busque e se consiga uma solução intermediária. Um acerto que seja melhor do que o que se tem hoje e que não demande um conflito violento, etapa tão elevada quanto indesejada. 

Da parte do palpiteiro fica a expectativa e coleta de informações mais precisas e confiáveis. 

De conselho, fica o mais simples: fuja de toda cobertura jornalística ou análise que carregue no risco de guerra e na construção de mocinhos e bandidos. Nesse jogo, simplesmente não há mocinhos.                                    

Saturday, December 07, 2013

A liderança de Mandela continua a unir

A morte de alguém oferece sempre a oportunidade para repensarmos muitas coisas. A morte de alguém como Nelson Mandela não deve ser diferente.

Madiba Mandela estava muito debilitado, tinha 95 anos e sua morte era esperada há meses. Muita gente apostou que ele morreria no hospital, quando estava internado por ter pneumonia.Até uma disputa familiar pelo direito de determinar o túmulo da família chegou a ser anunciada.

A imprensa nos últimos dias agiu como de costume. Biografia resumida em poucos minutos no rádio e na TV, ou publicada em páginas impressas deram a tonalidade emocional que mantém preciosos pontos de audiência ou alguma venda a mais para jornais e revistas em estado de coma. Nesses casos, é comum que a editoria prepare o material que será publicado tão logo se confirme a morte esperada. Anunciada ao mundo na tarde do dia 5/12, o Jornal Nacional dedicou um tempo considerável para o fato. Frases pinçadas, efeitos visuais e um bom material de arquivo certamente não foram improvisados naquele dia. 

Neste caso, a morte de Mandela para muita gente não se diferencia daquelas que recebem tratamento jornalístico mais prolongado. Jogadores de futebol, atores de cinema, políticos e tantos outros são igualados. Despertam alguma atenção e logo caem no esquecimento. 

Mas a partida de Mandela suscita outras condutas. A primeira é a de reconhecer que não foi apenas um ex-presidente de destaque internacional que morreu. Mas um líder. Certamente um dos líderes que fizeram diferença no século XX. 

Presidentes muitos podem ser. Muitos foram e são. Mas um grande líder  não aparece todos os dias. Líderes de verdade conseguem reconfigurar seus povos e contribuem para mudanças de caminho. Verdade que alguns podem liderar para a catástrofe, como Hitler. Mas outros usam sua liderança para a construção de uma vida melhor. Os líderes que realmente fazem diferença são reconhecidos pela continuidade de suas iniciativas, para além de seu próprio tempo. A liderança talvez possa ser medida justamente por isso, pelo tempo de permanência das ações. E também pelo alcance espacial delas. Certas realizações podem ultrapassar fronteiras. E por isso Mandela se destaca. Pelo alcance de sua obra no tempo e no espaço. 

A África do Sul teve um regime político racista dos mais vergonhosos do século XX. Mandela foi um líder da oposição contra ele. Agiu politicamente desde o início. Optou pela luta armada e não negou isso, jamais. Foi preso por pouco mais de um quarto de século. Sua filha mais nova tinha 2 anos quando ele foi encarcerado. Ele só a reencontrou a poucos anos de sair da prisão, quando ela já era mãe, com mais de 24 anos de idade. 

É impossível entender Mandela sem considerar o tempo em que foi preso. Quebrava pedras de calcário e dormia em péssimas condições. Teve muito tempo para pensar, sofrer e sonhar. Quando foi solto, não apenas a África do Sul o considerava um líder. Mas todo o mundo. Campanhas internacionais foram feitas para libertá-lo. 

Quando Mandela foi solto, ele tinha mais de 90% do país em suas mãos. Não tinha o poder de direito. Mas tinha de fato. Qualquer ser humano teria partido para a vingança contra os brancos. Mas Mandela não foi um ser humano qualquer. Conciliou com a minoria branca, que numericamente era reduzida. Mas militar e economicamente muito forte. Muitos acusam Mandela de ter feito muitas concessões e que por conta disso, as desigualdades entre brancos e negros ainda permanecem. Talvez seus críticos tenham certa razão. Mas um fato é indiscutível. Muitos eram aqueles que apostavam numa guerra civil com um esperado massacre do minoria branca. Um genocídio anunciado e não raro nas décadas de 1980 e 1990. Todas as apostas  num desfecho violento do Apartheid foram erradas. É bem razoável acreditar que as previsões mais pessimistas guardavam o equívoco de subestimar a capacidade política de Mandela.  


Por muitas décadas, uma parte significativa da minoria branca que detinha o poder acusou Mandela de comunista, corrupto, imoral e demagogo. Quando perguntado sobre isso, mesmo que indiretamente, Mandela sacava a frase feita: "Não sou santo...". 

Curioso notar que as grandes realizações se sobrepuseram aos erros do líder sulafricano. Uma dessas realizações foi o resgate da história do Apartheid na Comissão da Verdade e Reconciliação. Mandela entendia que não era o caso de partir para uma revanche, mas também que isso não significava a ocultação dos fatos ocorridos. Era preciso que seu país e que outros povos soubessem a verdade, para que os erros não fossem repetidos. 

Com o tempo, os detratores internos de Mandela se calaram. Muitos brancos não o suportavam mas, diante da força de sua liderança, simplesmente deixaram de se manifestar. 

Falar em lideranças que pregam a paz e defendem soluções negociadas parece algo impossível no Brasil de hoje. Certos segmentos da sociedade brasileira acostumaram-se mal. Passaram a confundir divergência política com inimizade. Críticas com ofensas.E tristemente não têm sido raro vermos
comemorações do câncer alheio ou do sofrimento daquele de quem se discorda. 


A presidência da República emitiu nota que a presidente Dilma irá ao funeral de Nelson Mandela. Na viagem a África do Sul, Dilma terá como convidados 4 ex-presidentes da república. Lula, FHC, Collor e Sarney aceitaram o convite. Não faltarão críticas ao desperdício de dinheiro público ou ao interesse de auto-promoção. Mas não deixa de ser interessante imaginar um bate-papo entre Lula, FHC, Dilma, Collor e Sarney no mesmo avião, por horas. Lideranças políticas de diferentes pesos, com pensamentos distintos e biografias muito peculiares. 

Em tempos de manifestações políticas marcadas pelo ódio e outros rancores, saber que Dilma, Lula e FHC terão a oportunidade de conversarem por horas, sem a presença da imprensa, é muito relevante. Entre os tantos motivos de conversa, certamente estará a vida de Mandela. Se Lula, Dilma e FHC tiverem juízo, farão um balanço honesto de tudo o que fizeram de bom e de ruim para as relações políticas do Brasil. Se tiveram a grandeza que se espera de ex-presidentes, chegarão à conclusão de que o Brasil carece de modos menos virulentos de tratamento entre adversários. 

A possibilidade de que as relações entre líderes petistas e do líder tucano possam ser menos agressivas não significaria a conciliação oportunista. Estaria muito mais próxima de um troço que chamam de civilidade. 

Mandela lutou pela união de seu país e o mundo reconhece isso. Não custa sonhar que possa fazer isso para além de suas fronteiras nacionais. Que o exemplo de Madiba Mandela sirva de assunto no avião da presidência da república.

Saturday, November 23, 2013

Outro recado para você que vai prestar Fuvest

Barack Obama cursou Ciências Políticas na Universidade de Colúmbia e depois Direito em Harvard. Foi líder comunitário em Chicago. Membro do Partido Democrata, elegeu-se senador pelo Estado de Illinois, em 1996. Em 2003, quando o presidente George War Bush tinha grande apoio popular para invadir o Iraque, Obama teve a coragem de se manifestar contra. Tantos os republicanos quanto os democratas apoiaram Bush. Naqueles sombrios dias de março de 2003, quem se opunha à invasão do Iraque era facilmente rotulado de anti-patriota ou conivente com o terrorismo. Os anos se passaram e o mundo constatou o erro da guerra contra o Iraque. Obama tem essa moral até hoje, a de ter escolhido e apontado o lado certo quando a maioria surda convictamente apoiava o erro. Dito isso hoje parece ter sido fácil para ele. Mas é razoável apostar na angústia e no mal-estar que deve ter sentido quando muitos o hostilizavam por suas convicções. Seja lá o que tenha pensado, Obama é o presidente do país mais poderoso do mundo hoje. 

Fernando Henrique Cardoso estudou Ciências Sociais e se tornou professor da USP. Poderia ter se aposentado nessa condição. Ingressou na política, fundou um partido e foi presidente do Brasil, eleito e reeleito. Luis Inácio Lula da Silva era operário. Ingressou na vida sindical num momento de desgosto pessoal. Também tomou gostou pela política, fundou um partido e foi eleito e reeleito presidente do Brasil. Assim como no caso de Obama, é um exercício interessante especular se esses dois líderes políticos tinham tanta convicção das decisões que tomaram e que acabaram, por diferentes modos, trazendo resultados satisfatórios para suas pretensões políticas. 

Florestan Fernandes foi um menino pobre que trabalhava como garçom num restaurante do centro de São Paulo. Não tinha terminado os estudos no tempo certo. Cursou o "madureza" - um tipo de supletivo- e entrou na USP, no curso de Ciências Sociais. Anos mais tarde ele se tornou doutor em Sociologia. Florestan Fernandes foi professor de Fernando Henrique Cardoso e amigo de Lula. Foi conselheiro dos DOIS durante a elaboração da Constituição que temos até hoje. Florestan poderia ter se aposentado como garçom. Preferiu estudar um pouco mais. Arriscou, talvez sem saber se poderia ter ido tão longe - quem é que sabe? Mas ele tentou. Não foi presidente do Brasil. Mas formou dois deles. 

Um jovem chamado Nelson Massini ingressou na Unicamp para cursar odontologia. Queria ser dentista. No meio do curso descobriu um outro mundo. Especializou-se em Medicina Legal. Na década de 1980 já era uma referência na sua área, quando se descobriu que um dos maiores criminosos nazistas tinha vivido no Brasil. Joseph Mengele, o Anjo da Morte do Campo de Awschvitz, viveu em São Paulo, morreu afogado em Bertioga e foi enterrado no cemitério na cidade de Embu, com nome falso. O mundo deve à perspicácia de Nelson Massini a comprovação de que o corpo enterrado no Embu era mesmo de Mengele. Nelson Massini é consultor da ONU, para perícia em casos de genocídio, como os que ocorreram na antiga Iugoslávia. Massini poderia ter sido dentista. Foi muito mais longe do que isso. Quem é que sabe o quanto de dúvida pairou sobre sua cabeça nos momentos de tomada de decisão? Hoje o sucesso acadêmico e o reconhecimento público dão a impressão de um ser anormal, um ser humano inigualável. Mas também é razoável apostar que teve alguma insegurança. Assim como tiveram Obama, FHC, Lula e Florestan. 

Aziz Nacib Ab-Saber queria ser professor de escola básica. Ingressou na USP para fazer História. Apaixonou-se pela Geografia. Pouco tempo antes de terminar o curso de Geografia estava determinado a ser professor da rede estadual de ensino de São Paulo. O salário era bom na época e ele precisava ajudar os pais com as despesas dos irmãos mais novos. Um professor propôs que ele se dedicasse à pesquisa. Mas ele teria que trabalhar como jardineiro da USP, até que dessem um jeito de contratá-lo. Aziz trabalhou como jardineiro por cerca de de 4 meses. Orgulhava-se de dizer isso. Depois da curta experiência como jardineiro foi técnico de Laboratório, doutorou-se e se tornou professor da USP. Emérito, como Florestan e FHC. Aziz foi o maior conhecedor da Amazônia que o mundo já teve. Será para sempre um dos nomes para estudos ambientais no Brasil e no mundo tropical. Aziz poderia ter sido, dignamente, apenas professor da escola básica. Foi muito mais longe do que isso. Foi o Professor de todos os professores de Geografia do Brasil.

A vida nos coloca o tempo todo diante de tomadas de decisão. Algumas são banais e outras podem mudar nossas vidas para sempre. Atravessar uma rua no tempo certo, não reagir a um assalto ou aceitar o amor de alguém que nos surge de repente. Nunca sabemos, no momento da decisão, se estamos de fato acertando. Decidimos e apostamos. Às vezes com maior ou menor convicção. Mas sempre é uma aposta. 

Podemos aceitar que a vida é feita de inúmeras situações em que a dúvida nos provoca. Se for assim, aumentam as chances de suportar melhor toda a pressão, angústia e ansiedades que as dúvidas nos colocam. 

Estamos a poucas horas de mais uma edição da Fuvest. Se você acreditar que é um monstro medonho, um monstro medonho ela será. Se permitir-se aceitar que se trata de uma longa prova que exige muitas decisões, verá que não há monstro. Há uma circunstância da vida em que haverá pressão e dúvida. 

Não sei o que essa prova pedirá. Tenho certeza de que será mais uma entre tantas que já ocorreram e outras que ocorrerão. Sei que  no passado muitos se decepcionaram e que outros tiveram o sucesso desejado. Tenho certeza de que aqueles que tinham a convicção da aprovação eram muito poucos. 

Queria ter escrito alguma coisa para você nesse momento. Pensei muito sobre isso. Penso todos os anos, às vésperas dessa aberração brasileira chamada vestibular. Não sei o quanto isso poderá ajudar ou atrapalhar. Na dúvida, preferi acreditar que poderia lhe dar algum alento e dizer que muitos desejam seu sucesso. E que ter dúvida ou insegurança não é feio ou pequeno. É humano. Como são humanos os que acertam e os que erram. 

Quero muito que você acerte.  Boa prova.                

Saturday, September 14, 2013

Um olé de Putin em Obama

Acompanhar o caso da Síria, sob ameaça de ataques dos EUA e Reino Unido nas últimas duas semanas, mesmo que superficialmente, foi certamente uma experiência digna de aprendizado com fortes emoções. 

Pelo lado do aprendizado, ficou a lição de que as palavras, tanto quanto as armas, fazem parte das relações internacionais, ou daquilo que vulgarmente chamam de Geopolítica. 

Pois há poucos dias, menos de 15 para maior exatidão, víamos o presidente da "maior potência" do planeta urrar como um leão, alegrando os velhos senhores da guerra, acionistas de fábricas de armamentos e especialistas formados em tabuleiros de WAR, alguns deles jornalistas de nossa "grande" imprensa. A velha frase "a montanha pariu um rato" nunca foi tão apropriada para uma farsa chamada Barack Obama. 

Não faz muito tempo, desavisados "informados" pela ala histérica de diversos veículos especulavam ante a possibilidade de um conflito generalizado no Oriente Médio, a partir da Síria. O apoio firme da Rússia de Putin levou as mais exaltadas mentes a especular um "eventual conflito de grandes proporções". O sensacionalismo nosso de cada dia deu as caras para, mais uma vez, segurar a audiência e as vendas de jornais e revistas decadentes com os velhos clichês: "...consequências imprevisíveis..." ou (a melhor de todas) "...uma guerra sabemos como começa, nunca como termina...".

Na agência Reuters, em 03/09/2013, líamos:



  Obama pediu, durante encontro com líderes parlamentares na Casa Branca, uma votação rápida do Congresso e reiterou que o plano dos EUA será limitado e não repetirá as longas guerras no Iraque e Afeganistão.
"O que estamos vislumbrando é algo limitado. É algo proporcional. Vai reduzir a capacidade de Assad", disse Obama.



O contexto era de ataques inevitáveis, mesmo que limitados a incursões aéreas, sem invasão terrestre. 

Hoje, 13/09/2013, as informações surgem em outro tom, como pode-se ler no Jornal de Notícias ( jornal português com nome para lá de criativo):

 Na noite de terça-feira, Obama anunciou ter solicitado ao Congresso a suspensão da discussão de uma resolução sobre o uso da força na Síria, depois de os russos, aliados de Al-Assad, terem proposto colocar o arsenal químico sírio sob controlo internacional, para destruição posterior.

Se antes tínhamos um Obama feroz, a rosnar a hegemonia de seu país diante de uma comunidade internacional resignada, hoje testemunhamos um líder fragilizado, a marcar posição de que não recuou e que ainda pode vir a atacar a Síria. Obama, o presidente que se elegeu em 2008 prometendo mais diplomacia e menos guerra é hoje quase patético.

Mas quais teriam sido os fatores a provocar tamanha alteração em tão poucos dias? Fatores, pois em casos como este, nunca se deve atribuir apenas um motivo. 

Certamente, uma das razões foi o vacilo de Obama em ir além do que realmente poderia. Pois se é verdade que militar e politicamente os EUA podem muito, experiências como o Vietnã, Afeganistão e Iraque provam que não podem tudo. Cercado de problemas domésticos, Obama precisa de apoio no Congresso para deixar sua marca como um líder, mais do que um presidente. Seus desafios não são pequenos. Crise econômica, empobrecimento, faltas de perspectivas para milhões de jovens e o risco de ser o presidente que mais prometeu do que cumpriu. Seu sistema de saúde pública ainda não é uma realidade para os 40 milhões de cidadãos que dele precisam e os empregos que a sociedade espera ainda não foram gerados em número suficiente. Obama contagiou os EUA e grande parte do mundo com uma esperança que não se concretizou. Para acelerar suas ações precisa de apoio no Congresso, o que inclui agradar republicanos e democratas ligados aos lobbys do petróleo, dos armamentos e da comunidade judaica. Não criar problemas para Israel na questão Palestina, não avançar nas relações com o Irã e ter um discurso belicista para o Oriente Médio são evidências desse esforço agradar aqueles de quem não se gosta mas de quem se precisa.

Obama deve ter realmente acreditado que poderia atacar a Síria com poucos danos políticos, tanto no plano interno quanto no externo. Deu-se mal. 

Internamente o que se viu foi uma crescente oposição à guerra, maior do que ele certamente esperava. Dizer que o povo americano está cansado de guerras inúteis não é demais. Acreditar que há um número de cidadãos nos EUA constrangidos com a imagem do país após o que ocorreu no Iraque e o que vem ocorrendo no Afeganistão é mais do que razoável. 

Entretanto, foi no lado externo que Obama apanhou feio. Um duro golpe foi a retirada do apoio do Reino Unido. A Rainha Elisabeth, madrinha de tantas mortes em sua história, assim como Cameron, um dos muitos primeiros-ministros dóceis aos EUA, bem que gostariam de manter o apoio ao primo rico. Mas o parlamento britânico não embarcou em mais uma aventura. Sem o apoio do Reino Unido, os EUA caminharam para o isolamento internacional, a despeito do entusiasmo de Hollande, presidente da França, outrora potência relevante. Hollande quis levar a França a ter algum protagonismo, ressuscitar uma influência que seu país já teve. Não foi o bastante para Obama. Hollande também apanhou e carregará o prejuízo de ter evidenciado a reduzida capacidade de influência francesa em nossos dias. Ou seja, a França quis se aliar aos EUA contra a Síria para ter demonstrar alguma importância. Se Obama hoje está queimado, Hollande saiu chamuscado. 

Mas o grande jogador em toda essa história foi Vladimir Putin, presidente da Rússia. Putin é o presidente que demonstra a habilidade política que a história premia com reverência, mesmo àqueles que pouco merecem respeito. Putin, ex-agente da KGB, sabe como poucos agir na política, pelo bem e pelo mal. Internamente é o presidente que manipula a imprensa, ameaça jornalistas, persegue opositores, mata separatistas e promove a intolerância contra os "indesajáveis" na Rússia. Putin é o caso do político que que age contra direitos e valores democráticos, mas tudo que faz é calculado. Como poucos, conhece a alma do povo russo, saudoso dos tempos da União Soviética e coeso sob duas grandes instituições do país, o exército e a Igreja Ortodoxa. Muito do que que Putin faz dentro da Rússia atinge esses dois objetivos, que são o resgate do orgulho russo em sua importância mundial, e a "defesa" de valores tradicionais do clero cristão ortodoxo. Matar chechenos, exaltar o exército e perseguir homossexuais são algumas das ações que fortalecem Putin dentro da Rússia, mesmo que chovam críticas internacionais. 

Em 2008 era primeiro-ministro de Medvedev, o presidente que elegeu para cumprir os 4 anos de mandato necessários para que Putin voltasse. Na Rússia, como no Brasil, só se pode ter uma reeleição consecutiva. Putin ficou no poder entre 2000 e 2008, apoiou Medvedv em 2008 e foi novamente eleito em 2012, com direito a tentar uma reeleição em 2016. Se continuar a jogar bem dentro e fora do país, poderá ficar no poder até 2020. Somando os tempos na presidência e como primeiro-ministro, Putin estará a altura de outros líderes, como Stalin e Brejenev. Certamente mais do que Lênin, Krushev e Gorbachev. 

Do tempo soviético, sobrou à Rússia no Oriente Médio a Síria como aliada, que abriga uma base naval russa no porto de Tartus e recebe apoio militar para manter a ditadura de Assad. Interessado em recuperar a importância que a Rússia já teve, Putin sabe que precisa da Síria para fazer frente aos EUA. Pode-se criticá-lo pelo apoio à ditadura de Assad por isso, mas fazê-lo sem lembrar do apoio dos EUA à ditadura da Arábia Saudita é transitar entre a ignorância e a má-fé. A crítica a ditaduras por respeito a valores democráticos não é compatível com ataques seletivos, diferenciando ditadores "malvados", quando adversários, ou "bonzinhos", "necessários", quando aliados. 

A Rússia tem fornecido armas e apoio ao regime de Assad desde a década de 1970. Não deixou de fazê-lo quando explodiu a guerra civil no país, em 2011. Obama diz se incomodar com as cerca de 1400 vítimas de armas químicas. Mas nada diz sobre as mais de 100.000 que morreram em consequência dos conflitos entre o governo sírio, apoiado pela Rússia, e os "rebeldes", amontoado de opositores armados pelos EUA e Arábia Saudita.

Putin nunca hesitou em seu apoio ao governo sírio. Nunca deixou de afirmar que a Rússia vetaria ataques dos EUA ao país em caso de consulta ao Conselho de Segurança da ONU. Obama ameaçou fazer o que Bush fez em relação ao Iraque e à Líbia: atacar sem consultar a ONU. 

Sem o apoio inglês, com pouco entusiasmo pelo apoio francês, alvo de críticas internas nos EUA e diante da firmeza russa, Obama mudou o tom de seu discurso. Poderia ter ordenado ataques à Síria sem consultar o Congresso dos EUA. Mudou de ideia e anunciou que desejava consultá-lo. Foi apoiado no Senado, mas sentiu que haveria maior resistência com o risco de reprovação dos deputados. Obama decidiu pedir adiamento da votação. 

No documentário "Sob a Névoa da Guerra", Robert McNamara, ex-secretário de Estado dos EUA na administração Kennedy, e condutor das negociações na Crise dos Mísseis entre EUA, Cuba e URSS, em 1962, ensina que não se pode deixar o adversário sem escolhas. Quando se negocia em momentos de forte tensão, um caminho é colocar-se no lugar do adversário. Pensar que ele deve ter uma saída honrosa e que não saia humilhado diante de uma derrota que você deseja lhe impor. Putin fez exatamente isso na última semana. Falou firme contra os ataques à Síria, declarou seu veto na ONU, mas negociou com Assad a entrega de seu arsenal químico a uma comissão internacional que deverá ter participação russa. Para todos os efeitos, Obama ainda quer demonstrar uma firmeza que não teve nos últimos dias. Caso alguém o questione, poderá argumentar que os ataques não foram necessários e que a ameaça deles fez com que Assad entregasse seu armamento. 

Ao fim de tudo, Putin construiu uma solução na qual Obama poderá sair dizendo que ganhou a discussão, num cenário em que Assad permanece no poder, com apoio militar russo e uma base naval aliada para conter eventuais ameaças dos EUA. Como resultado de todo o jogo de ameaças, avanços e recuos, Obama saiu, internacionalmente, menor do que entrou em toda essa história. Putin, sem alarde, saiu maior. 

Obama ainda tem tempo para ações que demonstrem sua grandeza, pois tem mandato até 2016. Mas parece que é Putin que ganhou maior segurança para apostar em sua permanência até 2020. E Assad permance, até então. 

     

   

Monday, July 15, 2013

Fora do ar

Por razões humanitárias este espaço ficará sem postagens até o próximo dia 24/07. 

O palpiteiro estará em algum lugar do Atlântico Sul. 

Caso queira saber mais do que isso, tente com esse pessoal:


CIA: 
 By postal mail:
Central Intelligence Agency

Office of Public Affairs

Washington, D.C. 20505


By phone:

(703) 482-0623

Open during normal business hours.


By fax:

(571) 204-3800



Ou...

NSA


National Security Agency

Attn: NCSC Capability Program

9800 Savage Road, Suite 6940

Fort Meade, MD 20755-6940

Sunday, July 07, 2013

Seria Snowden um heroi?

Em tempos de informação rápida, dispersa e superficial, herois e bandidos são construídos e desconstruídos com requintes de vulgaridade. O velho Mandela é o exemplo do momento. Ele foi condenado por terrorismo pelo regime    racista do Apartheid na África do Sul. E considerado pela CIA como elemento perigoso e potencialmente comunista, razão do apoio dos EUA ao governo racista sul-africano. Mandela defendeu ações terroristas contra o governo do seu país na década de 1960. Décadas depois, constatou-se que os planos de Mandela estavam num contexto de um regime autoritário e desumano, razão pela qual as explosões planejadas por seu grupo deveriam ser consideradas como atos de resistência legítima, a exemplo da resistência francesa contra os nazistas. Mandela foi solto por pressões internas e externas. Ganhou um prêmio Nobel da Paz e, hoje, no leito de morte, é considerado um dos maiores líderes do século XX. Ele teve uma vida pessoal nada tranquila. Contra ele, pesa uma acusação de agressão a sua primeira mulher, ainda antes de ser preso na década de 1960. Sob essa ótica, quem é Mandela? Líder pacifista, libertário, terrorista ou agressor de mulher? Quem leu a autobiografia do velho deve se lembrar da frase que nos ajuda a entende-lo: “não sou santo”.
A mídia estrangeira e sua subsidiária tosca no Brasil vivem a construir herois e bandidos. Curioso é notar que o heroi de hoje pode ser o bandido de amanhã, e vice-versa. Mas será que as pessoas mudam tanto assim? Ou mudam os juízos e rótulos que se constroem sobre elas?
Um palpiteiro notou que um candidato a herói/bandido não tem recebido a atenção devida, em que pese o conteúdo explosivo de sua importância. Edward Snowden é o típico caso misterioso, do qual ainda não tivemos a exata dimensão da sua importância.

Snowden é um nerd que não tem curso superior. Seu talento para sistemas de informação poderia ser comparado a Marc Zuckerberg do Facebook, Bill Gates, da Microsoft, ou Steve Jobs, da Apple. A diferença é que Snowden não ficou rico. Mas convenhamos, azucrinar a Casa Branca, irritar FBI, CIA e outros 13 serviços de inteligência dos EUA e, ainda por cima, indispor as relações dos EUA com dezenas de países, em menos de duas semanas, não é um feito a ser desprezado. Os outros nerds adorados pela mídia fizeram fortuna. Snowden está prestes a fazer história.

O nerd em questão trabalhou na CIA, na Suíça. Para quem não sabe, as contas secretas de paraísos fiscais como a Suíça atendem a mais do que corruptos, sonegadores fiscais, terroristas, traficantes e outros criminosos. Governos usam contas secretas para encobrir ações de seus espiões, em serviço pelo mundo afora. Quanto maior o poder econômico e ou político de uma potência, maior é a necessidade dessas contas secretas em outros países. Se levarmos isso em conta, dá para ter uma leve ideia do quanto Snowden viu e sabe.

As informações disponíveis até agora indicam que o nerd amargurou muita coisa pelo que viu e testemunhou. Em 2008, em final de governo Bush, Guerra do Iraque e campanha eleitoral, Snowden apostou que as coisas poderiam melhorar com a vitória de Obama. Não melhoraram.

O rapaz então tomou a decisão que causa confusão em meio mundo- e isso não é força de expressão. Vivia com sua namorada no Havaí até poucas semanas atrás. Decidiu voar para Hong Kong e denunciar o departamento de Estado dos EUA de lá, da China. O governo dos EUA pediu sua prisão. A China não tem acordo de extradição com os EUA e liberou o rapaz. Interessante notar que a China, acusada de prisões arbitrárias pelos americanos, não ter prendido Snowden em seu território. Gente maldosa e dada a palpites aposta num eventual acordo entre o governo chinês e Snowden: você denuncia os Ianques a partir de nosso território e damos as condições para que saia antes de sermos forçados a prendê-lo. A China não dá ponto sem nó. EUA, Rússia, Europa e América Latina em discussão por conta de Snowden e os chineses assistindo a tudo, de camarote...

Mas afinal, o que Snowden denunciou? Segundo ele, a Agência de Segurança Nacional dos EUA tem condições de monitorar e grampear qualquer computador conectado na internet. Sistemas sofisticados permitem a quebra de sigilo com a manipulação dos dados da Microsoft, Facebook, twitter, Skype e, quem sabe, até naquela página moribunda que você guarda no pré-histórico Orkut.

De acordo com o nerd dedo-duro, os EUA monitoram a União Europeia e várias autoridades dos países do continente. Há informações de que tenham fuçado a vida de autoridades e empresários no Brasil. E, se perguntar não ofende, a questão torna-se tão óbvia quanto abjeta: se os EUA agem assim com amigos, o que não estariam fazendo com inimigos? Ou antigos rivais, como Rússia e a China?

Snowden voou da China para a Rússia, numa área internacional do aeroporto de Moscou. Tecnicamente não está na Rússia. Os EUA pediram à Rússia que o prendesse. Mas o país também não tem acordo de extradição com os EUA. Danadinho esse nerd...

Apesar do escândalo provocado pelas atitudes nada legais- em duplo e pobre sentido- dos EUA, Snowden é um criminoso. Ninguém pode revelar segredos de Estado para o mundo. Isso é tão criminoso nos EUA, quanto no Brasil ou na Tailândia. Mas Snowden e muitas outras pessoas acreditam que não se trata de um crime. Trata-se do descumprimento das leis de um país que descumpriu leis, acordos e bons modos com meio mundo. Para o governo dos EUA, Snowden é nada menos do que um traidor de alto calibre. Para outros mundo afora, é um heroi que lutou pelo direito à verdade.

Na semana passada houve mais um episódio interessante nessa história toda. O presidente da Bolívia, Evo Morales, estava em Moscou, num encontro de chefes de Estados produtores de gás natural. O avião de Morales tem baixa autonomia de voo e precisa ser reabastecido com regularidade para viagens longas. No caminho de volta, Portugal, Espanha e França negaram o necessário pouso para o avião de Morales. Coube à Áustria conceder o direito INTERNACIONAL de um avião presidencial fazer uma parada para reabastecimento. Segundo Morales, os austríacos revistaram seu avião, à procura de Snowden. Não o encontraram. Mas provocaram um incidente internacional sem precedentes na história recente. A atitude dos austríacos é antes de tudo uma agressão, condenada pelos protocolos diplomáticos internacionais. Morales protestou, e teve a solidariedade de outros presidentes latino-americanos, o Brasil inclusive.

Mas cá entre nós, gente maldosa aposta que os russos e os bolivianos deram um passa-moleque nos EUA e nos seus paus-mandados europeus. Não precisa ser um gênio especialista em espionagem para imaginar que há a presença da CIA em Moscou. Assoprar nos ouvidos dos espiões da CIA na Rússia, sugerindo que Snowden estivesse no avião de Morales, não é algo lá tão difícil de fazer. Sobretudo para os russo, velhos conhecidos da CIA... Dada a gana dos EUA para prender Snowden e, a histórica relação hostil do presidente Morales aos EUA, nada mais lógico. Tudo faria muito sentido, caso Snowden estivesse realmente no tal avião. O saldo foi catastrófico para muita gente. Para os europeus que barraram Morales, ficaram o peso de cometerem uma ilegalidade e o constrangimento de terem agido errado sob ordens de Washington. Ou seja, saíram na foto como paus-mandados de Obama. Para os EUA, ficou pior. Seu serviço de inteligência e espionagem pode até ser sofisticado e intrometido, mas, neste caso, provou ser incompetente a ponto de não saber com precisão onde de fato estava Snowden...

A novela prossegue. A Venezuela está disposta a dar asilo político a Snowden. O problema é como deslocar o moço de Moscou a Caracas, num voo que exigiria pouso para reabastecimento. Uma pergunta é mais do que provocativa: onde?
Sabe-se lá o que acontecerá com Snowden e com as relações 

dos EUA com o mundo. Espionar a União Europeia,  indispor-se com a China, se atritar com o governo russo e ofender a América Latina não é pouca coisa para menos de 15 dias. O tempo se encarregará do destino de Snowden que, a despeito de ser inteligente e ousado, precisa de aliados poderosos e, quem sabe, alguma sorte. Não erra quem disser que, hoje, Snowden é prioridade número 1 dos EUA, comparável ao que foi Bin Laden há pouco tempo.

Mas a história, como a Geni, tem lá o seus caprichos. Até o momento, Snowden provou que é bom de xadrez. Joga com muita inteligência e uma ousadia capaz de fazer qualquer 007 de idiota.


Mas então, Snowden será Heroi ou bandido? Talvez daqui a algumas décadas tenhamos um julgamento mais sereno. Hoje, não deixa de ser empolgante assistir a mais uma página da história sendo escrita. E interpretada das maneiras mais diversas.