Wednesday, March 05, 2014

O que querem na Ucrânia?

Um erro muito comum nas análises sobre questões internacionais é a personificação dos fenômenos. Nesse tipo de abordagem, convivem a ingenuidade e a má-fé. Às vezes juntas, outras vezes separadas. Não raro fundidas em uma só. Em outras palavras, países não são comparáveis a pessoas. 

Mas como fugir da armadilha das personificações? Antes de tudo, conceitos, história e informações confiáveis.  

Conceitualmente é preciso reconhecer que chefes de Estado falam em nome de seus povos, mas que não são a personificação deles. Representam, mas nem de longe encarnam o que seus povos são. Qualquer nação tem suas contradições. Em que pese uma relativa popularidade para certas questões, sempre haverá grupos descontentes e de oposição. Isto serve para o Brasil de hoje, para Rússia do Carnaval 2014 e para a Alemanha dos tempos de Hitler. Obama representa o povo estadunidense. Cretino é aquele que crê na possibilidade de que todos os seus cidadãos com ele concordem. 

Conhecer um de história também ajuda um bocado. Questões internacionais não nascem do acaso. Não brotam como cogumelo ou surgem como bolor do pão que se esqueceu no armário. Toda crise entre dois ou mais países revela o desequilíbrio de uma dança que já se ensaiava há tempos. 

Nenhum líder colocaria seu prestígio interno e externo em xeque por um capricho matinal. Se ele prevê que terá problemas sérios por uma iniciativa política qualquer, a primeira coisa que leva em conta é se vale ou não a pena. Toda hostilidade ou até mesmo violência respondida deve ser ponderada com o ganho que se pretende ter. Em outras palavras, os líderes se perguntam: "vale ou não à pena?". 

Esmiuçando uma encrenca internacional em andamento verifica-se que os interesses que nela se reconhecem hoje já existiam antes. Em muitos casos, a crise do presente deriva de soluções que não atenderam plenamente os lados em disputa do passado. Ou que líderes do presente entendam que seu país tenha perdido injustamente algo que no presente possa ser recuperado. Um líder maroto é capaz de ressuscitar uma velha questão, aparentemente resolvida, para que possa mudar o curso da história. Ou seja, tenta recriar o processo político, histórico, econômico e social a partir de uma iniciativa do momento, enraizada pelo tempo mas ainda não totalmente enterrada. 

A informação confiável é outro elemento importante, mas que se mostra escasso em nossos tempos. A chamada era da informação nos oferece quantidade e rapidez. Características muitas vezes dispensáveis quando se quer consistência e fidelidade aos fatos. Em nossos tempos a informação consistente e confiável tem sido atropelada por questões práticas e técnicas. Na prática, os grande veículos de informação têm demitido jornalistas mais velhos e experientes, preferindo contratarem os mais jovens e afoitos. A necessidade de redução de gastos justifica essa medida no mundo todo. E aquilo que se ganha no orçamento com os mais jovens é perdido na credibilidade com a publicação de notícias superficiais e com a profundidade analítica de um pires. Fotos e imagens têm sido mais relevantes do que parágrafos de revelem um pensamento mais cauteloso e ponderado. Essa é uma das razões que nos fazem ver as mesma imagens, com descrições semelhantes e um discurso único para o mesmo problema. Perdemos em profundidade aquilo que nos vomitam em quantidade a cada minuto pelos "grandes veículos" da imprensa, nacional e estrangeira. 

Tecnicamente a informação necessária tem sido prejudicada por uma abordagem jornalística que alguns estudiosos têm chamado de "a novelização da notícia". A exemplo do que ocorre nas novelas, não há nuances. Não há espaço para contradições. Num noticiário novelizado há apenas o bem e o mal. O vilão e o herói. O certo e o errado. As notícias são pautadas por essa lógica simplista, para que o leitor, telespectador ou ouvinte tenha "facilidade" de entendimento. Outro aspecto da informação novelizada é a divulgação de certos eventos por etapas, como se fossem capítulos. Nesse tipo de jornalismo, os vilões são carregados em seus aspectos malignos e não se tem nada que possa identificá-los com seres humanos, dotados de bondades e maldades. No oposto, os heróis são quase puros, com virtudes acima de todos e infalíveis. A malandragem ocorre quando personalidades da política ou da polícia são mostradas como heróis coadjuvantes. Nos casos mais bem-sucedidos da novelização jornalística os heróis são gente da própria imprensa. Isto é, aquele veículo ou jornalista que conseguiu, com seu talento e trabalho, a informação que ninguém até aquele momento havia conseguido. O herói midiático é assim aclamado, implicitamente, como aquele que realmente fez a diferença.

No caso da Ucrânia, o que temos então?


A novelização da crise russo-ucraniana começa ao se aceitar que Putin é o vilão. Ou o herói, a depender da fonte escolhida. Putin não é um vilão, assim como está longe de ser um herói. Ele é o cara que serviu ao regime soviético, que usou de meios legais e ilegais para se destacar em sua carreira de agente da KGB. Foi o homem que soube entender o momento político e econômico da Rússia para recuperar a auto-estima de seu povo e realizar mudanças que trouxeram melhorias sentidas por muitos. Putin poderia ser glorificado por isso. Mas seus adversários dentro e, principalmente fora da Rússia, salientam seu personalismo, seu nacionalismo exacerbado e a facilidade com que elimina adversários dentro e fora do país. Tudo isso é verdadeiro, mas incompleto diante do que ele representa para muitos russos. E também não explica o óbvio: se ele é tão mau quanto dizem, por que tem permanecido no poder por tanto tempo? Seja por quais razões forem, inclusive as criminosas e imorais, não se negue a Putin a habilidade que o mantém no Poder desde 2000. Nenhum dirigente russo, desde os tempos dos Czares, conseguiu o que ele tem hoje: a permanência no poder por tanto tempo numa democracia, ainda que repleta de problemas. 

Putin sabe que o nacionalismo e o orgulho dos russos é algo com que não se pode brincar. E que rende popularidade. Quando o governo Bush tentou atrair a Geórgia para a Otan, com promessas econômicas e estratégicas, Putin jogou xadrez. Numa primeira jogada reconheceu a cidadania de georgianos da Ossétia do Sul que se consideram russos. Na segunda jogada, distribuiu armas secretamente para forças pára-militares russas na Ossétia, ou seja, armou pessoas no território georgiano. Em seguida, deixou que o dirigente da Geórgia acreditasse que Bush fosse confiável. O presidente da Geórgia foi tolo o bastante para atacar os russos em seu território. E Putin habilidoso o suficiente para invadir o território vizinho com 300 tanques e ataques aéreos. Bush não arriscou ter problemas com a Rússia por conta da Geórgia. Reclamou e ameaçou com palavras. Nada fez. O presidente georgiano não teve apoio dos EUA e a Ossétia do Sul declarou-se independente. No papel, a Ossétia do Sul não é território russo. Na prática sim. 

Seis anos depois da crise com a Geórgia, Putin volta a jogar, desta vez na Ucrânia. O país tem cerca de 25% da população com etnia russa, principalmente no leste, próximo das fronteiras com a Rússia. Os ucranianos do oeste consideram-se mais europeus e menos russos. Durante a existência da URSS muita coisa aconteceu por lá. A Rússia invadiu a Ucrânia e apoiou os comunistas do país, instalando seu regime socialista e reprimindo os ucranianos de oposição. Na década de 1930, milhares de ucranianos morreram de fome, diante de um programa de agricultura imposto por Moscou. Quando a Alemanha nazista invadiu o país, muitos foram os ucranianos que se aliaram aos alemães. Assim como foram muitos aqueles que deram suas vidas para a vitória do Exército Vermelho. Após a guerra, Stalin perseguiu muitos ucranianos considerados traidores, assim como condecorou seus heróis. 

Na década de 1950, o sucessor de Stalin, Nikita Krushev, cedeu a Crimeia, território com maioria russa para a Ucrânia. Há quem diga que Krushev tenha dado um gesto de reparação ao que os russos fizeram no país. Dizem que ele conheceu como poucos os abusos do stalinismo na Ucrânia. A cessão territorial seria então uma compensação histórica para isso. Krushev pode ter agradado muitos ucranianos, mas irritou muitos russos, tanto da Crimeia quanto da própria Rússia. Isso nunca foi aceito por um bocado de gente na Rússia. Essa insatisfação atravessou gerações e são a eles que Putin quer atender hoje. 

A Crimeia foi mantida como território da Ucrânia, mesmo quando a URSS se desintegrou e o Exército Vermelho se retirou do país. Por acordo, a Crimeia manteria o russo como língua oficial e parte de seu litoral no Mar Negro se tornaria área militar da Marinha Russa. Muitos ucranianos ocidentais não aceitaram esse acordo. Muitos deles descendem daqueles que se aliaram aos nazistas na Segunda Grande Guerrra Mundial. Muitos deles apoiaram ou lideraram a derrubada do presidente formal da Ucrânia há poucos dias. 



Em vermelho, os ucranianos de fala russa. 

ukraine 2010 election
Resultado das eleições de 2010. Em azul, os russos votaram no presidente deposto... A disputa na Ucrânia é mais do que política, é étnica.

Pelo lado dos EUA e da União Europeia, a instabilidade ucraniana foi bem-vinda. Por gestos e palavras apoiaram os opositores do governo anterior, leal à Rússia. Com dinheiro daquelas contas secretas que Edward Snowden conhece bem, financiaram grupos mais exaltados. Inclusive neo-nazistas. Putin fez o mesmo, financiando e armando grupos de "auto-defesa" russa na Ucrânia. Ou seja, EUA e UE financiaram e armaram opositores ucranianos do oeste e a Rússia os que apoiavam o governo a leste. Qualquer semelhança com o que ocorre na guerra civil em andamento na Síria não é coincidência...

Putin conseguiu autorização de seu leal parlamento para invadir a Ucrânia, em nome da defesa dos direitos humanos de russos que vivem naquele país. No papel, tem autorização legal de seu país para marchar até Kiev, capital ucraniana. Na prática, Putin usa essa autorização como um sinal, algo que pode vir a ser feito, não o que exatamente irá fazer. Uma ameaça enfim.

Pelo lado os EUA Obama discursa com firmeza. Suspendeu negociações econômicas e ameaçou com sanções. O problema é que isolar economicamente a Rússia não é bom negócio, para os EUA, para a UE e para o mundo... A Rússia é o principal fornecedor de gás natural para os europeus, por meio de gasodutos que atravessam a Ucrânia. Em caso de hostilidades maiores não precisa disparar um único míssil. Basta cortar o gás para a Europa. Putin faria isso? Fez em janeiro de 2007, por cerca de 10 dias, em pleno inverno europeu..

Obviamente que Putin sabe que a suspensão do gás natural para a Europa provocaria uma crise mundial da qual seu país também seria vítima. É verdade que a Europa precisa do gás russo. Assim como é verdade que a Rússia precisa do dinheiro pago por esse gás fornecido aos europeus. 

A escalada das hostilidades verbais chegou a níveis perigosos durante os dias de Carnaval. Tropas russas avançaram e recuaram sobre o território da Ucrânia. Soldados da "auto-defesa" russa no país foram vistos portando fuzis AK-47 e devidamente saudados pelos russos na Ucrânia. Grupos neo-nazistas agrediram russos, comunistas e templos judaicos. Os ânimos estão exaltados e há muito discurso de ódio de ambos os lados. Há muita pólvora e muita gente brincando com fogo. 

Pelo lado dos EUA, da União Europeia e da Rússia não há o menor interesse numa guerra. O mundo já tem problemas demais para mais um, com grandes proporções. Mas, à maneira de tempos imemoriais, não se pode fingir que uma provocação não foi feita. Ou seja, ver um potencial adversário com atos desafiadores e nada fazer em nome da "segurança mundial". Isso é nobre entre seres humanos. Mas não estamos falando de pessoas, mas de países, certo? 

No jogo de provocações, ameaças, avanços e recuos, deverá prevalecer o interesse maior: evitar uma guerra. alguém pode errar o tom e as coisas desandarem de vez. Essa possibilidade é sempre colocada. Mas a probabilidade maior é a de que se busque e se consiga uma solução intermediária. Um acerto que seja melhor do que o que se tem hoje e que não demande um conflito violento, etapa tão elevada quanto indesejada. 

Da parte do palpiteiro fica a expectativa e coleta de informações mais precisas e confiáveis. 

De conselho, fica o mais simples: fuja de toda cobertura jornalística ou análise que carregue no risco de guerra e na construção de mocinhos e bandidos. Nesse jogo, simplesmente não há mocinhos.                                    

2 comments:

Pedro Liguori said...

Moraes,

Tive aula com você no colegial, e esse relato não me surpreende. Me deixa muito feliz saber que ainda existe sim pessoal providas de cultura para fazer uma análise do que acontece sem tomar lados e partidos.

Ultimamente, o que mais se vê é uma dicotomia burra entre "esquerda" e "direita", sem argumentos, baseado apenas no que você disse - a oposição de bandidos e mocinhos, com "reaças" e "fascistas" para cá, "corruPTos" para lá.

Por isso, é excelente ver uma matéria independente DE VERDADE.

Sobre o assunto, me parece que a Guerra Fria nunca acabou de verdade. A Rússia ainda parece viver, socialmente, em um mundo próprio, e mais do que nunca usa seus laços passados e étnicos para exercer influência sobre a parte soviética da Europa. Ou seja, é tão imperialista quanto os EUA, embora hoje em dia esteja mais enfraquecida que os Americanos, ainda por conta do término da Guerra Fria.

Quanto a ação do Putin, li um artigo alguns meses atrás de como ele teria dado o famoso "nó tático" no Obama no Oriente Médio. Me parece ser O grande estrategista de nosso tempo - que, de pretensa paz e quietude, não tem tanto destaque.

No fundo, me lembra a situação da Checoslováquia em meados dos anos 1930: desejo de Hitler, que era temido pela Grã-Bretanha e França, foi negociada contra a sua vontade para que se evitasse uma guerra. Me parece ser o destino da Ucrânia.

PS: não quis comparar Putin a Hitler, mas foi o exemplo mais vívido que me veio à cabeça.

Um abraço,
Pedro

Anonymous said...

Leitura obrigatória. Obrigado!