Tuesday, April 10, 2007

Falando da vida alheia: Florestan Fernandes

Florestan Fernandes nasceu em 22 de julho de 1920. Era filho de uma mulher pobre que ganhava a vida como lavadeira no bairro do Brás, em São Paulo. Apesar da pobreza, Florestan teve um gosto especial para a leitura. Teve que trabalhar desde criança, razão pela qual não pode concluir os seus estudos. Assim, sua história não foi muito diferente das de muitos brasileiros pobres que não puderam terminar seus estudos. Mas Florestan foi um brasileiro diferente.
Quando trabalhava de garçom num restaurante do centro de São Paulo, despertou a curiosidade de alguns estudantes de direito da USP, lá no Largo São Francisco. Um garçom diferente. Educado, Florestan trabalhava com sobriedade. Mas sempre que podia, pegava um livro e se dispunha a ler, aproveitando as horas de menor movimento. Os estudantes se aproximaram de Florestan, tornando-se seus amigos e motivando-o a terminar sues estudos. Florestan Fernandes fez um curso supletivo para terminar o que hoje chamamos de Ensino Médio e, na época, Madureza. Florestan estudou mais e se formou mais tarde em Sociologia. Entrou na USP. Foi colega de curso de um jovem de origem libanesa chamado Aziz Nacib Ab’Saber. (ESSE PALPITEIRO ESCREVE AGORA COM BASE EM TUDO O QUE SE LEMBRA DE UMA PALESTRA DADA PELO PRÓPRIO AZIZ, SENDO QUALQUER IMPRECISÃO FRUTO DE LÁPSOS DE MEMÓRIA...).
Aziz disse certa vez que a amizade com Florestan surgiu naturalmente, diante das circunstâncias. Aziz não era tão pobre, mas era “turco”, tinha dois metros de altura e um inconfundível sotaque do interior de São Paulo. Era tímido. Aziz e Florestan sentavam-se próximos nas aulas do professor francês Roger Bastide. Eram tempos em que a USP tinha professores franceses que davam aulas em francês. Aziz às vezes não entendia alguma passagem da aula do professor Roger e se socorria com o colega. Florestan não se limitava a traduzir a aula. Em francês, aprofundava o que o professor havia dito, chegando ao cúmulo de corrigí-lo algumas vezes. Tudo em voz baixa... Bastide logo percebeu a inteligência do rapaz e o preparou para ser professor da USP. O filho da lavadeira pobre substituiu o professor francês. Devemos essa a Bastide...
Como professor, Florestan percebeu algo de genial num jovem estudante, chamado Fernando Henrique Cardoso. O filho da lavadeira que havia se tornado professor da USP não era preconceituoso e por isso deu grande ajuda para o desenvolvimento do filho do General, ex-aluno do tradicional colégio jesuíta São Luis, de São Paulo.
Mais tarde Fernando Henrique se tornou também professor da USP e, assim como Florestan, cassado após o Ato Institucional número 5, o famigerado AI-5. A história do Fernando Henrique muitos sabem, foi para a França. Curiosamente, poucos falam sobre Florestan. O “comunista” Florestan foi muito bem recebido nos EUA e deu aula na Universidade de Colúmbia. Os EUA podem ser qualquer coisa, menos burros. Viram o tesouro de conhecimento que era Florestan e o aproveitaram. Azar do Brasil, que por ter uma ditadura estúpida o perseguiu. Azar de quem não pode ter aula com ele na USP.

Florestan voltou ao Brasil, mas não à USP. Foi dar aula na PUC. A USP reconheceu mais tarde o valor do professor e o homenageou como “professor emérito”, título que poucos podem ter. A recém-inaugurada biblioteca de Ciências Humanas da USP fez uma exposição sobre Florestan, que dá nome ao novo prédio. Numa das fotos da exposição, uma linda e simbólica foto de Florestan abraçando o amigo Aziz Ab’Saber por ocasião do título de professor emérito.

Florestan se elegeu deputado pelo PT em 1986. O mesmo Florestan que antes, em 1977 foi dar aula em Yale, Universidade que forma a elite dos EUA. Aquela por onde andaram Bil Clinton e o tal George W. Bush. Florestan não servia para a ditadura, mas serviu para Yale... Como deputado, foi uma das referências para a elaboração da nossa Constituição. Os embates foram fortes e o professor funcionava como uma bússola em meio a tantas leis e projetos.

Mais tarde, Itamar Franco deu uma honraria da República, reconhecendo o valor de Florestan. Florestan apoiou Lula em 1994, mas quem levou a presidência foi seu antigo aluno, agora “FHC”. Para ele, Fernando. Florestan foi implacável nas críticas a Fernando. Fernando, agora FHC, sabia a profundidade e o alcance de cada uma delas. Florestan estava velho e doente do fígado. FHC deixou as divergências políticas de lado. Propôs a Florestan que se tratasse nos EUA. Deixou claro que o professor tinha esse direito, dada a prerrogativa da honraria que Itamar o havia concedido.

Florestan agradeceu e mandou dizer que era apenas um funcionário público como outro qualquer. Sugeriu que Fernando melhorasse a saúde pública brasileira, de modo que qualquer cidadão pudesse dignamente ser tratado no próprio país. Florestan foi operado e morreu. Morreu em agosto de 1995, com a dignidade que poucos no Brasil podem até hoje sustentar. Morreu digno e coerente ao que defendia. O professor Florestan era muito mais do que um garçom diferente: era um brasileiro diferente na suas atitudes e na sua importância. Até hoje pode ser considerado uma bússola...

1 comment:

Sol said...

Muito bom o seu texto. Agradeço por ter tido a oportunidade de lê-lo.

Sol