Tuesday, February 06, 2007

Kassab cassou o debate

Quando o palpiteiro ingressou na Universidade em 1993, seguiu um conselho: assistir palestras. Descobriu o debate. Foi na universidade que o palpiteiro descobriu essa prática interessantíssima. Uma ou duas pessoas falam por alguns minutos, às vezes um hora, outras vezes até duas, dependendo da importância dos debatedores. Aí então a gloriosa sessão de perguntas. Ninguém é mais importante que ninguém. Uma pessoa habilidosa pergunta já provocando. O debatedor, se também for habilidoso, responde com ironia redobrada. Bons debatedores sabem agitar a galera. E, claro, a galera quer ver o circo pegar fogo. Vale quase tudo. Ironia, cara feia, emoção, indignação, raiva. Mas uma regra é fundamental: respeitar o direito do interlocutor se manifestar.
Foi assim que o palpiteiro viu um debate entre Mário Covas e Roberto Requião, durante a campanha entre Parlamentarismo e Presidencialismo, em 1993. Também viu Marilena Chauí, numa aula inaugural, debatendo com quem quisesse se manifestar o tema cultura e racismo no Brasil. A mesma Marilena Chauí que debateu a eleição presidencial de 1994 com Eva Blay. A primeira defendendo Lula, a segunda, defendendo Fernando Henrique Cardoso, pois era suplente dele naquele ano. Mais tarde o palpiteiro viu o candidato Lula debatendo com alunos curiosos questões sobre política, ideologia e rumos para o Brasil. Mas nenhum desses debates chamou tanto a atenção do palpiteiro quanto Aziz Ab’Saber e Fábio Konder Comparato. O primeiro, Geógrafo reconhecido internacionalmente, é capaz de arrancar lágrimas e gargalhadas em questão de poucos minutos de fala. Sua capacidade impressiona por adequar a fala ao tipo de público a que se dirige. Aziz é capaz de impressionar tanto professores doutores num auditório da USP, quanto qualquer um que assista a uma passeata da qual ele faça parte. O palpiteiro viu as duas situações... Fábio Konder Comparato faz mais o estilo do comedimento. Tem fala suave e postura acadêmica. Talvez o doutorado em Direito em Paris, tenha-o influenciado nesse sentido. Ab’Saber e Comparato fizeram um debate na Faculdade de Economia da USP certa vez. A mesma onde também estiveram tantos debatedores, como Aldo Rebelo e Delfim Neto. Por razões desconhecidas, o debate com Aziz e Comparato foi mal divulgado. Apareceram cerca de dez pessoas. Entre elas um palpiteiro em formação. Havia dúvida se o debate ocorreria. Os dois debatedores surpreenderam. Ao invés de se despedirem e voltarem tristes para casa pediram permissão para fazer algo diferente: descerem as cadeiras do palco e fazer um debate mais informal. Uma conversa com cerca de 15 pessoas em roda. Foi uma das maiores demonstrações de humildade e respeito que esse palpiteiro testemunhou. Um geógrafo disputado entre França e EUA e o advogado de acusação contra Collor no processo de impeachment conversando com simples estudantes de graduação. A regra foi respeitada. Exposição dos debatedores e perguntas de uma platéia de 13 pessoas. Respeito à regra e às pessoas que quisessem se manifestar. Nada de especial. Apenas uma questão de civilidade.
Anos mais tarde, houve uma discussão acalorada na Faculdade de Humanas da USP. A discussão era sobre o fechamento do acesso ao prédio. A TV Globo cobriu o primeiro dia de discussões. Apresentou uma matéria completamente distorcida no seu jornal SP TV. Muitos ficaram indignados com a atitude da emissora. Dias depois, novas discussões. Uma equipe de reportagem da Globo apareceu. Imediatamente, alguns alunos se manifestaram contra ela gritando “fora satanás”... A equipe da emissora ficou preocupada. Democraticamente a galera colocou em votação a presença da Globo no auditório. Ganhou o não. O palpiteiro comemorou como uma criança idiota uma vitória que foi motivo de vergonha. Regina Sader, professora cassada no período da ditadura, estava ao lado do palpiteiro. Ela não viu a euforia com a qual o palpiteiro comemorou a expulsão da Globo. Apenas olhou e disse: “Que absurdo! Lutamos tanto pela liberdade de expressão e agora não permitimos o trabalho de uma canal de televisão...” O palpiteiro acenou com a cabeça, ao mesmo tempo concordando e se sentindo um lixo anti-democrático pela atitude imbecil. Lembrou-se então da lição dos franceses: “posso não concordar com nenhuma palavra do que você fala, mas defenderei até à morte o direito de dizê-las”. É assim que aprendemos a conviver. Lição essa que vale para todos, palpiteiros ou não.
Vale até para quem se julga acima das pessoas comuns, como esse tal prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab que ontem expulsou aos berros um idoso que se manifestou contra ele. O debate é uma prática humana que vem de tempos muito antigos. Sobreviveu ao fim da Grécia Antiga. Sobreviveu ao Império Romano. Resistiu à repressão religiosa da Idade Média. Venceu tanto a ditadura soviética quanto as ditaduras do Nazismo na Alemanha e do anti-comunismo de Argentina e Brasil. A necessidade e a força do debate resistem ao tempo e às pessoas que a ele se opõem. Kassab haverá de passar. Que fique o debate...